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Decisão monocrática como instrumento de ‘ordinarização’ do rito do habeas corpus

Diversos casos em que habeas corpus são indeferidos monocraticamente sem qualquer menção aos critérios fixados

Pierpaolo Bottini e Aldo Romani

STJ

A pandemia de Covid-19 alterou a forma como nos organizamos e nos relacionamos. Fechados em casa, desenvolvemos formas de suprir a carência de contato por meios remotos. Reuniões, happy hours e almoços de domingo com a família encontram nas videoconferências novas formas de realização segura.

O funcionamento dos Tribunais segue a mesma lógica. Despachos, sessões de julgamento e sustentações orais ocorrem à distância, sem grandes prejuízos aos debates ou ao exercício da defesa.

No entanto, algumas práticas de jurisprudência defensiva vêm se intensificando. Com a justificativa de apressar processos e de diminuir o número de recursos e feitos, em especial nesses tempos conturbados, são tomadas decisões que surpreendem e causam perplexidade em todos aqueles que operam o direito.

Dentre eles, merecem destaque os julgamentos monocráticos de mérito de habeas corpus recursos ordinários em habeas corpus, em especial no STJ. Ministros decidem sobre o pedido sozinhos, sem a participação do Colegiado e sem possibilitar aos advogados o direito à sustentação oral.

Tal prática não parece adequada. Em primeiro lugar porque conflita com o próprio Regimento Interno da Corte que fixa a necessidade do julgamento de recursos ordinários em habeas corpus pela Colegiado (parágrafo único do artigo 245 do RISTJ). Também afronta o parágrafo único do artigo 31 da Lei Federal 8.038/1990, que estabelece que o Relator submeterá o feito a julgamento independentemente de pauta – ou seja, indica o julgamento coletivo.

É verdade que a lei e o regimento permitem, em situações específicas, o julgamento monocrático do habeas corpus: quando a matéria for objeto de jurisprudência consolidada do STJ ou do STF (artigo 202), quando o pedido for manifestamente incabível, quando for manifesta a incompetência do Tribunal para dele tomar conhecimento originariamente ou quando for reiteração de outro com os mesmos fundamentos (artigo 210).

Na mesma linha, seu artigo 34, inciso XVIII reafirma as hipóteses de exceção, dizendo serem atribuições do relator “não conhecer do recurso ou pedido inadmissível, prejudicado ou daquele que não tiver impugnado especificamente todos os fundamentos da decisão recorrida, e também “negar provimento ao recurso ou pedido que for contrário a tese fixada em julgamento de recurso repetitivo ou de repercussão geral, a entendimento firmado em incidente de assunção de competência, a súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça ou, ainda, a jurisprudência dominante acerca do tema”.

Mas, na prática, tais requisitos restritivos do julgamento monorático não têm sido observados. São muitos os casos em que habeas corpus são indeferidos monocraticamente sem qualquer menção aos critérios fixados, como se não existisse qualquer parâmetro a ser respeitado. Há várias situações em que habeas corpus são conhecidos e depois indeferidos sem análise do Colegiado.

Tal prática gera dois problemas sérios e graves à ampla defesa.

O primeiro: os recursos de tais decisões são agravos regimentais, que levam o caso ao Colegiado, porém não permitem sustentação oral, retirando do Paciente um importante mecanismo de apresentação argumentativa.

O segundo: a submissão destas decisões ao STF por meio de recurso ordinário tem encontrado resistência, porque se tratam de decisões monocráticas e, portanto, não mereceriam apreciação da Corte Suprema antes da análise do Colegiado do STJ.[1]

Este posicionamento é absolutamente legítimo nas hipóteses em que a decisão monocrática segue as hipóteses de exceção dos já mencionados artigos 202 e 210 do RISTJ. O mesmo não se pode dizer, entretanto, nos casos em que a decisão monocrática se sobrepõe à competência do órgão colegiado.

Nesses casos, submeter a parte a aguardar o julgamento do agravo regimental, para que apenas então o tema seja levado ao STF, representa, em verdade, atribuir-lhe a responsabilidade pela desmesurada quantidade de recursos ajuizados nos tribunais, ainda que por via oblíqua.

Tal posicionamento acaba por subverter o sentido próprio do habeas corpus, passando a submetê-lo a um rito de tramitação ordinário e, consequentemente, muito mais lento, em construção de uma jurisprudência defensiva que tenta proteger os Tribunais Superiores de uma infinidade de recursos ajuizados.

O caminho para a solução deste problema não é, definitivamente, relativizar o conteúdo da norma que regula o julgamento dos habeas corpus. Afinal, o “habeas corpus constitui remédio mais ágil para a tutela do indivíduo e, assim, sobrepõe-se a qualquer outra medida”.[2]

Assim, o não conhecimento da impetração ou do recurso ordinário sob o argumento de que se estaria buscando atalhos processuais, ou pretendendo alcançar, per saltum, a Corte Suprema, acaba por chancelar uma prática que não encontra abrigo nas regras procedimentais positivadas.

Não é demais lembrar que, “enquanto garantia constitucional para a tutela da liberdade de locomoção, o habeas corpus é medida de amplíssimo cabimento”.[3] Não à toa, Constituição da República não prevê restrições a seu ajuizamento que não o indivíduo sofrer, ou se achar ameaçado de sofrer, violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

 


[1] i.e. HC 182013, HC 182623, HC 183057 e RHC 182647.

[2] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. História e prática do habeas corpus, 7ª Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, T. I, P. 3.

[3] BADARÓ, Gustavo. Manual dos Recursos Penais, 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, P. 515/517.

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