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A transformação do Judiciário em ator político

A tensão entre os Poderes não decorre da mera disposição emocional de seus integrantes, mas de fenômeno institucional mais profundo e complexo, com desdobramentos ainda imprevisíveis

Por Pierpaolo Cruz Bottini — Para o Valor
20/12/2019

Nos últimos tempos o estranhamento entre o Poder Judiciário e o Legislativo tem pautado o noticiário e frequentado a arena de debates públicos. De um lado, o STF ingressa no campo legislativo – anulando, criando e modulando leis – e avança sobre parlamentares com medidas antes impensáveis, como buscas e apreensões em gabinetes e residências. De outro, o Congresso ameaça instaurar CPIs para investigar ministros da Suprema Corte e anda às voltas com pedidos de impeachment dos mesmos personagens.

Mais do que rusgas pontuais, há algo substancial em tais embates. A tensão entre os Poderes não decorre da mera disposição emocional de seus integrantes, mas de um fenômeno institucional mais profundo e complexo, com desdobramentos ainda imprevisíveis e que precisa ser melhor estudado.

Zygmunt Bauman (1925-2017) dizia que vivemos em tempos líquidos, de conceitos e instituições instáveis e cambiantes. A complexificação das relações políticas, a velocidade da evolução científica e tecnológica e o advento das redes sociais criaram novas formas de interação e de construção de mundos de vida que aceleram a
obsolescência de tudo o que nos cerca, inclusive de valores, dogmas e instituições.

A intensidade dessa desconstrução e do surgimento de novos paradigmas desafia os responsáveis pela criação de regras e normas para o corpo social. A definição dos limites entre atos permitidos e não permitidos é pautada pela incerteza, por demandas contraditórias, porque cada setor ou classe compreende e aceita o novo de diferentes formas e níveis. Não há consenso sobre a maneira de regulamentar temas diversos como “fake news”, políticas de meio ambiente, gestão de dados, moedas digitais e inúmeras outras questões que impactam a vida em sociedade.

Isso afeta profundamente a atividade do legislador, fonte primária das normas de conduta. Legislar nunca foi tarefa fácil, mas exercê-la em tempos líquidos, em meio a interações fluidas e demandas heterogêneas é um desafio duro, ainda mais em um contexto partidário fragmentado, sem orientação ideológica clara.

Diante dessa dificuldade, a resposta do Parlamento muitas vezes é o silêncio ou a ambiguidade. A complexidade dos novos temas leva o legislador, em inúmeros casos, a não decidir sobre questões relevantes. Acaba por manter em vigor regras antigas e obsoletas, por deixar vazios normativos ou por criar normas imprecisas, que admitem interpretações tão distintas que todos os grupos de interesse representados se sentem contemplados, mesmo que diferentes suas pretensões.

Essa omissão ou imprecisão legislativa sobre assuntos essenciais tem consequências institucionais. Ao deixar de tomar uma decisão política, o Parlamento acaba por delegar ao Poder Judiciário a função de regulamentar essas questões.
Passa a ser atribuição dos magistrados, quando demandados, dar resposta e preencher as lacunas legais em casos concretos.

Tomemos o exemplo do direito de greve dos servidores públicos. Previsto na Constituição, esse dispositivo jamais foi regulamentado por lei diante da dificuldade de compor os interesses dos diversos grupos afetados. A omissão do legislador fez com que entidades de funcionários levassem a questão ao STF, que acabou por fixar critérios e parâmetros para o exercício do direito constitucional. A Suprema Corte acabou por legislar e fixar regras gerais sobre o tema, tomando a decisão política que caberia ao Congresso Nacional.

A politização do Judiciário, portanto, não é obra do acaso ou de um desejo ativista ou voluntarista de seus integrantes. Decorre de uma apreensão consciente da tarefa de decidir sobre o conteúdo político de normas diante da omissão legislativa. Os magistrados passaram a suprir o silêncio do Legislativo, a definir os limites do permitido e proibido. O Poder Judiciário – em especial o STF – deixou de ser apenas uma instituição voltada à análise da constitucionalidade de normas e passou a preencher as lacunas deixadas pelo Congresso Nacional, com caráter abstrato e vinculante, em atividade tipicamente normativa.

E, como ocorre com pessoas e instituições, uma vez exercido, o poder tende a buscar espaços maiores. Chamado a suprir omissões legislativas ou a esclarecer o conteúdo de leis, o STF tomou gosto pelo avanço sobre áreas antes demarcadas institucionalmente. Começou a se debruçar sobre a pertinência e oportunidade das decisões políticas do legislador. Se antes ocupava um vazio conscientemente deixado pelo Parlamento, empenhou-se em substituí-lo em determinados temas.
Assim, proibiu doações eleitorais por empresas, autorizou o aborto em certos casos e até inovou em matéria penal, criando o crime de homofobia.

O STF tornou-se um personagem importante na definição de políticas públicas do país, atribuindo-se um protagonismo inédito em temas como o uso de drogas, pesquisas com células-tronco, prazos prescricionais de crimes, parâmetros do indulto e assim por diante.

Não se trata de um fenômeno nacional. Luiz Moreira, em livro sobre o tema, traz exemplos de episódios similares na Alemanha, no Canadá, na Itália, África do Sul e em outros países. Nos Estados Unidos, a Corte Suprema deu a última palavra sobre temas politicamente sensíveis, como o direito ao porte de armas (Columbia vs. Heller), os limites de gastos em campanhas eleitorais (Citizen United vs. FEC), o casamento entre pessoas do mesmo sexo (Obergefel vs. Hodges) e de tantos outros casos, a ponto de Kaplan afirmar que os debates na Justiça americana são a
continuação da política por outros meios.

Mas a hipertrofia judicial tem seus percalços. O primeiro deles é o déficit democrático das decisões, uma vez que o Poder Judiciário não tem respaldo eleitoral para definições de políticas públicas. Por mais bem-intencionados que
sejam seus passos em direção ao bem comum, ministros do STF não se submeteram a sufrágios para representar o povo. Embora sejam escolhidos por um presidente eleito, sua permanência no cargo não depende de avaliações periódicas.

Por mais que a Suprema Corte tente suprir tal deficiência com audiências públicas ou com a chamada de entidades da sociedade civil para participar de processos relevantes – com os “amigos da Corte”, tais iniciativas estão longe de conferir ao Judiciário a legitimidade para a tomada de certas decisões políticas. Há uma diferença significativa entre corrigir a constitucionalidade ou omissões de leis e substituir o Parlamento em sua atividade típica. Por mais que se discorde do legislador e de suas escolhas, trata-se do agente legitimado para atender e representar as demandas sociais.

O segundo percalço é o escrutínio público. Quando trata de questões técnicas e jurídicas, um tribunal é submetido a críticas da mesma espécie, provenientes de profissionais e corporações ligadas ao mundo do direito. Quando avança sobre temas políticos, submete-se ao crivo de outros setores.

A sociedade civil, movimentos populares, agentes econômicos e financeiros passam a acompanhar, avaliar, comentar e debater o teor das decisões judiciais, não pelo viés técnico jurídico, mas por suas consequências práticas e conotações ideológicas.
O profano adentra o debate jurídico. Decisões e acórdãos ocupam as primeiras páginas de jornais e espaços nobres no noticiário. Ministros dão entrevistas, participam de programas de televisão, são aplaudidos e vaiados em aviões e
restaurantes. Tal fenômeno adquire tamanha intensidade que alguns magistrados deixam a toga para submeter-se ao pleito eleitoral, buscando o foro mais adequado para um ativismo estranho à prestação jurisdicional.

Em suma, o STF aos poucos se transforma em um ator político, e é preciso compreender que essa politização é um fenômeno mais complexo e substancial do que revelam as aparências. Por trás dos embates cotidianos, das trocas de farpas em plenários ou sessões, das ameaças recíprocas entre Poderes, há uma redefinição das funções institucionais dos órgãos públicos diante de uma nova formatação social.

Difícil prever o destino dessa reacomodação estrutural, mas é fácil perceber que se trata de um fenômeno duradouro, que impacta e impactará de forma profunda o sistema e a organização política do país.

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de direito penal da USP. Foi Secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça em 2005 e 2006.

https://valor.globo.com/eu-e/coluna/a-transformacao-do-judiciario-em-ator-politico.ghtml

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