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A reforma do judiciário e o Conselho Nacional de Justiça

Autor: Pierpaolo Bottini

Diretor de Modernização de Administração da Justiça da Secretaria de Reforma do Judiciário – Ministério da Justiça, mestre e doutorando em Direito Penal pela USP

Após treze anos de tramitação, a Proposta de Emenda Constitucional nº 29/00 foi votada no plenário do Senado Federal. Trata-se da reforma do Judiciário, ou seja, de uma série de alterações significativas relativas à estrutura do sistema judicial brasileiro, à composição dos tribunais, ao estatuto básico da Magistratura e às competências jurisdicionais. Ademais, a emenda constitucional promove modificações em outras instituições públicas, como o Ministério Público e a Defensoria Pública, criando órgão de controle e acompanhamento para o primeiro e conferindo autonomia orçamentária e financeira à última, dentre outras novidades.

E para a instituição de mecanismos de acesso mais eficientes, como a previsão da descentralização dos tribunais e o fortalecimento dos juizados itinerantes, principalmente nas regiões carentes e afastadas dos grandes centros urbanos.

Neste contexto, é importante ressaltar um dos pontos mais polêmicos e, ao mesmo tempo, mais importantes da reforma levada a cabo pelo Congresso Nacional, qual seja, a instituição do Conselho Nacional de Justiça, criado com a inclusão do artigo 103-B no texto constitucional, denominado de controle externo do Judiciário.

O Conselho Nacional de Justiça, que será instituído em 180 dias após a promulgação da emenda constitucional, será composto por nove magistrados, das diferentes esferas e instâncias, por dois membros do Ministério Público, por dois advogados e por dois cidadãos de notável saber jurídico, um indicado pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal, que exercerão a atividade por dois anos, admitida uma recondução. De sua própria composição pode-se perceber a impropriedade de denominar o órgão como controle externo, já que a maioria de seus membros pertence à própria Magistratura.

O Conselho Nacional de Justiça terá três competências específicas, concomitantes e complementares. A primeira e a nosso ver a mais importante, será a atividade de reunir dados estatísticos do Judiciário em âmbito nacional, proceder à análise dessas informações e, com base nesses estudos, apresentar propostas de instituição de políticas judiciais. Assim, o órgão terá capacidade de conhecer o sistema judicial como um todo, ter ciência das falhas e dos gargalos, bem como das experiências bem sucedidas, podendo, no caso das últimas, replicá-las e incentivá-las em todo o território brasileiro. Ademais, terá a competência de determinar regulamentações e padronizações de atividades fundamentais em áreas importantes, como nos casos de procedimentos de informática. É inconcebível que, nos tempos atuais, um magistrado em São Paulo não tenha acesso a dados armazenados em tribunais de outros

Estados porque o sistema de informatização das unidades federativas é incompatível. Informações sobre antecedentes criminais, sobre situação e trâmite de processos, e outros dados poderiam ser disponibilizados com a padronização dos sistemas, que poderá ser efetivada sob a gerência do Conselho Nacional de Justiça. Ao Conselho será facultado, ainda, tratar com outras entidades, externas ao Poder Judiciário, para instituir canais de comunicação que facilitem o trabalho do juiz e das partes, como o desenvolvimento de sistemas de penhora on line, de veículos ou de outros bens cadastrados em órgãos públicos (imóveis, etc.), ou a criação ou aprimoramento de sistemas de troca de informação ou de peticionamento virtuais, garantidos e seguros por mecanismos de certificação digital de assinaturas.

Além das competências de planejamento e regulamentação de atividades, o Conselho terá a função de apreciar a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União.

Esta atividade, do Conselho, de acompanhamento dos atos administrativos é complementada por uma terceira competência, prevista no texto aprovado pelo Senado, que trata da avaliação disciplinar dos magistrados. Por ela, o Conselho deverá receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou sejam oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço, bem como aplicar outras sanções administrativas.

As maiores críticas que pesam sobre o Conselho alinham-se na afirmação de que sua instituição viola o princípio da separação de Poderes prevista no art. 2º da Constituição, pois cria-se um órgão de composição mista que se imiscuiria nas atividades do Judiciário. Tal afirmação nos parece infundada por três motivos.

Em primeiro lugar, o Conselho Nacional de Justiça integra o Poder Judiciário, pois é inserido, topograficamente, dentre os órgãos judiciais, elencados no artigo 92 da Constituição. Portanto, não se trata de órgão externo, mas de instituição do próprio Poder.

Em segundo lugar, os membros do Conselho, mesmo aqueles que não fazem parte dos quadros da Magistratura, ao integrarem o órgão passam a ostentar a condição de integrantes do Judiciário, da mesma forma que ocorre com os advogados e promotores oriundos do quinto constitucional e com os membros do Supremo Tribunal Federal que, em comum, são magistrados, mas não faziam parte da carreira originalmente. Não se diga que a condição dos membros do Conselho é distinta porque seu mandato é temporário, de dois anos, e o mesmo não ocorre com os integrantes do quinto constitucional, que ostentam a vitaliciedade. Ora, a aceitação dessa afirmação significa negar a condição de membros do Poder Judiciário aos advogados que integram a Justiça Eleitoral, na condição de juízes, os quais também exercem transitoriamente a função judicante(1). Assim, o caráter temporário dos membros não implica denegação da natureza de integrante do Poder Judiciário ao Conselho Nacional de Justiça, ainda que este desempenhe funções distintas dos demais órgãos.

Por fim, a instituição do Conselho não afronta a separação dos Poderes porque o mesmo não interferirá na atividade típica do Judiciário, qual seja, a atividade judicante. O planejamento e acompanhamento tratará dos atos administrativos do órgão, que não se confundem com a atividade de julgamento de lides. A independência do juiz, que consiste na liberdade de julgar conforme seu entendimento e suas convicções, não é violada pela fiscalização dos atos administrativos por ele praticados, que envolvam a gerência do patrimônio público, nem pelo acompanhamento do cumprimento de seus deveres funcionais, previstos em lei.

Desta forma, além de constitucional, a existência do Conselho Nacional de Justiça é fundamental para a valorização do Poder Judiciário como uma instituição pública, democrática e transparente, e, sem dúvida, pilar indispensável para o respeito aos direitos e garantias constitucionais de um Estado de Direito material.

Nota
(1) O artigo 121 da Constituição prevê o período de dois anos de exercício dos juízes na Justiça Eleitoral (§ 2º).

Pierpaolo Bottini
Diretor de Modernização de Administração da Justiça da Secretaria de Reforma do Judiciário – Ministério da Justiça, mestre e doutorando em Direito Penal pela USP

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