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A racionalidade do sistema penal

PIERPAOLO CRUZ BOTTINI, PROFESSOR-DOUTOR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP

A discussão sobre o papel e os limites do Direito Penal na sociedade contemporânea desperta as mais acirradas polêmicas e paixões. Vivemos em uma sociedade de massas, de riscos, com grande desigualdade social, em que a prática do crime é uma realidade cotidiana. Delitos tradicionais como o roubo, o homicídio e o tráfico de drogas contracenam com novas formas de criminalidade, como a agressão ao meio ambiente, a lavagem de dinheiro e as complexas e criativas modalidades de lesão à administração pública.

A pergunta sobre qual a melhor política criminal para o enfrentamento desta criminalidade deve ser respondida com serenidade e responsabilidade, de maneira a contribuir para a utilização da reação penal da forma mais eficaz e útil, e, ao mesmo tempo, garantir que os preceitos constitucionais de proteção à dignidade e à liberdade humana sejam respeitados, para a própria manutenção do Estado Democrático de Direito.

A resposta mais tentadora, e mais usual, é a defesa do aumento do rigorismo penal, como fazem alguns especialistas em segurança pública e agentes políticos, afirmando que as benesses previstas na legislação criminal, como o indulto e progressão de regime, devem ser abolidas em prol da eficácia da luta contra o delito.

A legislação penal brasileira, ao contrário do que se pensa, longe de ser branda, é bastante rigorosa em relação àqueles submetidos ao sistema penal, desde o processo penal até a execução da pena. Todas as alterações na legislação penal, processual penal e de execução penal, nas últimas décadas, foram no sentido de criminalizar condutas ou de ampliar o rigor do Direito Penal (Lei dos Crimes Hediondos, lei do regime disciplinar diferenciado, leis de crimes contra o consumo, Lei dos Crimes Ambientais, Lei de Biossegurança, nova Lei de Drogas, lei que dificulta a prescrição penal)

Ainda que possam ser apontados alguns lapsos de flexibilização do Direito Penal, como a decisão do STF de garantir a progressão de regime àqueles condenados por crimes hediondos ou a aprovação de lei que amplia os casos de aplicação de penas alternativas à prisão, estas não modificam o fato de que a grande maioria das normas aprovadas endurece o tratamento do réu ou do condenado.

A aplicação desta legislação, pelas autoridades judiciais, não é menos rigorosa, seja no aspecto penal, seja no aspecto processual. O número de presos no Brasil chega à cifra de 427.134 (janeiro de 2008), sendo que 37% são presos provisórios, ou seja, cidadãos ainda não condenados que aguardam o fim do julgamento em estabelecimentos penais de qualquer espécie.

No entanto, mesmo com uma legislação cada vez mais rigorosa, aplicada de forma cada vez mais rígida, o índice de criminalidade aumentou de forma espantosa nas últimas décadas. Recente estudo levado a cabo pelo Ministério da Justiça apontou, por exemplo, que a promulgação da Lei dos Crimes Hediondos não impediu o aumento da prática dos mesmos. Da
mesma forma, a Lei de Crimes Ambientais não impediu que as agressões ao meio ambiente se multiplicassem. Fica evidente, portanto, que não é o aumento do rigor na aplicação da lei penal, ou o enrijecimento de sua interpretação, que resolverá o problema da criminalidade do país. Não adianta mais do mesmo remédio quando este já se mostrou ineficaz para o fim pretendido.

O tão propalado e defendido programa Tolerância Zero, que reduziu a criminalidade na cidade de Nova York, não consistiu apenas no endurecimento da ação penal, mas trouxe consigo inúmeras outras atividades, dentre as quais programas de inclusão social efetivo, que contribuíram de forma muito mais eficaz para a diminuição dos delitos do que o aspecto midiático da intolerância penal.

Por outro lado, a passividade não será também a solução para a superação do problema da criminalidade. É necessário refletir sobre a maneira mais adequada de orientar o Direito Penal para auxiliar na redução das atividades ilícitas, mas também é importante evitar o discurso fácil e sedutor de que basta o recurso ao rigor da lei penal para enfrentar o crime.

Como afirmava o ex-Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, a prevenção do crime não se faz pelo aumento do Direito Penal, mas pela certeza da aplicação efetiva e célere da lei existente. Para isso, não é necessário aumentar as penas, acabar com o indulto ou com a progressão de regime, mas se faz urgente uma reforma na legislação processual penal para evitar que gargalos e dificuldades de processamento de feitos resultem em julgamentos que
levem nove ou dez anos para sua conclusão, com prejuízo para o réu, para a sociedade e para as vítimas do delito. Medidas como a unificação das audiências para ouvir testemunhas, a supressão de recursos despropositados, como o protesto por novo júri, ou que facilitem a intimação e notificação das partes, têm a capacidade de acelerar o processo e evitar a prescrição dos crimes, bem como diminuir as prisões preventivas por tempo além do necessário.

Também são fundamentais medidas de modernização do aparato judicial e policial para permitir uma eficaz troca de informações e dados entre autoridades e instituições, e de informatização, garantindo a prática de atos processuais de maneira célere e transparente. Se há polêmica para a realização de interrogatório de réus presos por videoconferência, nada impede a implementação imediata deste sistema para ouvir testemunhas ou peritos à distância, em outros estados ou países, simplificando um procedimento que hoje é responsável por parte considerável do tempo processual.

Por fim, faz-se imprescindível desenvolver um programa de segurança pública que, ao lado da aplicação correta e eficaz da lei penal, assegure programas de inclusão para prevenir que situações de risco social transformem cidadãos carentes em futuros criminosos.

Desta forma, alternativas como o Programa de Segurança Pública com Cidadania, lançado pelo Ministério da Justiça, que congrega alterações na legislação processual penal, medidas de repressão e de integração comunitária e social, parecem mais efetivas e responsáveis do que propostas simplistas de mero recrudescimento penal.

É importante compreender que fazer política criminal não significa ampliar a repressão de maneira atabalhoada, retirando a eficácia e a credibilidade do próprio Direito Penal. Fazer política criminal exige reflexão sobre as fontes e as razões do delito e a melhor forma de evitálo, congregando ações de repressão e de prevenção social, sempre dentro dos limites de atuação apontados pela Constituição Federal. Talvez, desta forma, o Direito Penal perca em termos de espetáculo midiático, mas a sociedade ganhará a percepção de que uma política criminal de bom senso é capaz de trazer resultados mais concretos e animadores na luta contra a criminalidade.

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