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Crime de Perigo Abstrato

04/01/2011 por Pierpaolo Cruz Bottini

Primeiramente, poderia nos conceituar o Crime de Perigo Abstrato?

Crimes de perigo abstrato são aqueles que não exigem a lesão de um bem jurídico ou a colocação deste bem em risco real e concreto. São tipos penais que descrevem apenas um comportamento, uma conduta, sem apontar um resultado específico como elemento expresso do injusto.

Podemos citar como exemplo o crime de dirigir embriagado (Lei 9.503/97 “Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência”). O tipo penal não exige a lesão ou a morte de alguém, e também não prevê que seja demonstrado que alguém foi exposto a um risco concreto pelo veículo dirigido pelo condutor embriagado. Descreve apenas um comportamento e determina a aplicação da pena, independente do resultado.

Os crimes de perigo abstrato têm sido largamente utilizados pelo legislador nos últimos tempos, não apenas nos crimes de trânsito, mas também na área ambiental, biossegurança, crimes financeiros, dentre outros. Justamente por esta ampliação legislativa dos crimes de perigo abstrato que a doutrina tem dedicado mais tempo ao estudo desta técnica de tipificação.

A sociedade contemporânea, “do risco”, está mais predisposta a recepcionar este tipo de instituto jurídico?

O que caracteriza a sociedade contemporânea não é o maior “risco” existente, mas, a ampliação da “sensação de risco”. Os perigos que afligem a sociedade atual não são maiores do que aqueles que afetavam o cotidiano de nossos avós ou das gerações anteriores – talvez sejam até menores. Mas a “vivência” destes riscos é mais presente. Seja pelas incertezas científicas sobre as técnicas e produtos que nos são ofertados diariamente, seja pela intensa cobertura feita pela mídia sobre acidentes e catástrofes, há uma sensação de insegurança maior, há um sentimento de proximidade do risco.

Essa insegurança geral cria um discurso pela antecipação da tutela penal. A sociedade não admite mais aguardar a ocorrência de um resultado lesivo para aplicar uma pena. Há uma política de proibir comportamentos perigosos, mesmo que não causem resultado algum, como consequência desse clamor por maior segurança, maior tranquilidade, frente à nova sensação de riscos.

O senhor concorda que há uma tendência da formação de um Direito Penal hipertrofiado, prevencionista e expansivo?

Sim. O aumento da sensação de risco gera um clamor pela expansão dos mecanismos de gestão e controle de perigos, e o direito penal é um desses instrumentos. Mas ao mesmo tempo essa expansão pode conflitar com princípios constitucionais de um Estado Democrático de Direito, como o princípio da lesividade, da proporcionalidade ou da legalidade.

Por outro lado, é importante notar que essa expansão penal não é linear nem democrática – como às vezes se apresenta. Ainda que o direito penal tenha se expandido para novas áreas, como a criminalidade fiscal e de empresas, é fácil notar que nessas esferas a aparente ampliação veio acompanhada de instrumentos que dificultam a aplicação da norma, como a possibilidade de extinguir o processo com o pagamento do tributo, ou o reconhecimento do princípio da insignificância de forma muito mais abrangente do que ocorre em relação a outros crimes.

Não critico estes instrumentos de redução da incidência das normas penais, que são adequados à subsidiariedade do direito penal. Mas não é correto limitá-los a alguns tipos de delitos, como fiscais e econômicos, e rechaçá-los em outros, como nos crimes patrimoniais comuns – ex. furtos e estelionatos.

Em síntese, há uma inegável expansão do direito penal, mas não é uma ampliação linear ou “democrática”, mas simbólica e seletiva. A hipertrofia vale para alguns delitos, enquanto que para outros há a criação de mecanismos que afastam a punibilidade.

O aumento da importância de bens jurídicos como meio ambiente, novos mercados de capitais, relações de consumo, dentre outros, contribuem para esta tendência?

Sem dúvida. A constatação de que a vida em sociedade exige a preservação não apenas de bens individuais, mas também de outros bens coletivos ou difusos – concepção que acompanha um modelo desenvolvimentista de Estado – traz para o direito penal a tarefa de se ocupar da proteção desses novos institutos.

No entanto, a tendência à “espiritualização” dos bens jurídicos, ou seja, a progressiva proteção de bens não individuais deve ser acompanhada com cautela para que o conceito de bem jurídico não perca sua utilidade de limitação do direito penal, como ocorreu na Alemanha nazista sob o sistema dogmático da Escola de Kiel. Admitir a proteção de bens coletivos não significa aceitar qualquer valor como bem jurídico. É preciso lembrar que o direito penal protege bens e valores importantes para o desenvolvimento do ser humano, portanto, mesmo os bens jurídicos coletivos – meio ambiente, ordem econômica – devem ser protegidos quando ameaçada sua funcionalidade para o desenvolvimento humano. Em suma, é preciso compreender que os bens jurídicos coletivos tem um forte lastro antropológico e sob esse prisma devem ser reconhecidos.

Neste sentido, o senhor acredita que com a atenção maior voltada a estes bens haja uma inclinação maior de substituição do modelo clássico de justiça pela justiça negociada?

A justiça negociada exige a identificação do titular do bem jurídico ou ao menos o agente autorizado para fazer a negociação. No caso dos bens coletivos o titular é indeterminado, o que dificulta – mas não impossibilita – o desenvolvimento de soluções “restaurativas”. Mas nada impede o desenvolvimento de outras soluções “negociadas” como a transação nos juizados especiais, que limitam a atuação indiscriminada do direito penal. O instituto da delação premiada é distinto porque tem um referente processual, mais do que material, e seu
objetivo não é a pacificação social e a restauração dos conflitos, mas a efetivação da investigação e da produção probatória. É um instrumento válido, mas seus contornos ainda precisam de melhor definição legislativa e de mais reflexões doutrinárias para que se evite o arbítrio e o abuso.

O nascimento de normas com previsões genéricas, dando ao juiz uma perigosa amplitude decisória, sobretudo pelo risco de uma eventual renúncia da prova do dano e de causalidade entre a conduta e o resultado, não pode ameaçar o sistema de garantias fundamentais?

A dinâmica do desenvolvimento científico e das relações sociais afeta de uma maneira interessante a produção de normas penais. O legislador – diante da constante evolução tecnológica – abdica de produzir tipos penais com descrições detalhadas e taxativas de condutas, para evitar a “obsolescência imediata” das normas penais, ou seja, evitar que no dia seguinte de sua promulgação seu mandamento seja algo superado, inútil, distante da realidade. O efeito disso é a produção de tipos penais abertos ou normas penais em branco, que descrevem de maneira menos precisa o comportamento proibido, e remetem sua complementação ao magistrado ou ao administrador público. Um exemplo claro disso é a lei de drogas, na qual o legislador deixa de indicar com precisão quais os produtos proibidos e delega essa função ao Poder Executivo. Em outros casos, essa delegação é feita para o magistrado, no caso dos tipos penais abertos.

Essas técnicas são legitimas desde que o legislador não abdique de descrever a base do comportamento delitivo e remeta a outras instâncias apenas a complementação de partes específicas do tipo penal. Mas o exagero, como a delegação de praticamente toda a descrição do tipo delitivo ao juiz ou ao administrador – como, por exemplo, no crime de gestão fraudulenta – afronta o princípio da legalidade e merece ser rechaçado.

Por fim, a renuncia à prova do dano e da causalidade também é legítima, e é feita pelos crimes de perigo abstrato, que por não exigirem resultado lesivo, não exigem a demonstração do nexo da causalidade. Mas também o uso desta técnica merece cautela. A materialidade do crime de perigo abstrato impõe a demonstração da prática do comportamento proibido, mas não só isso. Exige também a comprovação de que o comportamento tinha periculosidade, que tinha potencialidade para afetar um bem jurídico. Não será necessária a prova do dano ou do nexo causal, mas deve ser demonstrada essa capacidade abstrata de afetação de bens jurídicos, para que o princípio da lesividade não seja mitigado.

Alguns juristas defendem que há um flerte entre o Crime de Perigo Abstrato e o Direito Penal do Inimigo. O que o senhor acha deste posicionamento?

Não acredito que a existência de crimes de perigo abstrato na legislação signifique a aceitação do direito penal do inimigo. Vale lembrar que nossa Constituição – que consagra o modelo Democrático de Direito – prevê expressamente a punição de um ato de perigo abstrato: o tráfico de drogas. E nem por isso nossa Carta adota o direito penal do inimigo.

Por outro lado, o reconhecimento dos crimes de perigo abstrato sem a preocupação em demonstrar a periculosidade do comportamento, pode levar a condenações por
comportamentos inócuos, sem capacidade de afetação de bens jurídicos. Essa criminalização de comportamentos sem a verificação de seu potencial para afetar bens jurídicos pode levar a um direito penal autoritário, que se preocupe apenas em proteger a validade das normas sem observância de seu referencial último, que é a preservação da dignidade humana. O crime de perigo abstrato é punido porque o ato gera risco para bens jurídicos concretos, e não apenas porque o comportamento é contrário à norma.

Assim, os crimes de perigo abstrato não representam, por si, uma ruptura no modelo democrático de direito, mas sua interpretação extensiva, sem preocupação com a periculosidade do comportamento, implica na assunção de um conteúdo autoritário e inadmissível para o direito penal.

Como a jurisprudência vem se posicionando frente a este polêmico tema?

O STF tem discutido o tema há algum tempo em debates polêmicos. A questão da criminalização da arma desmuniciada (RHC 89889) ou do porte de munição (HC 90075) tem como pano de fundo esse tema: a legitimidade da punição de comportamentos inócuos – sem capacidade de afetar bens jurídicos nem em potencial. Mas ainda não há um posicionamento definido.

Nos crimes de porte de arma municiada, ou nos casos de embriaguez ao volante, o mero comportamento já tem capacidade de afetar bens jurídicos – ainda que nenhum deles seja efetivamente lesionado, nem efetivamente colocado em perigo concreto. Há periculosidade, há potencialidade de perigo na mera conduta. Aqui é válida a condenação pelo perigo abstrato criado.

Mas nos casos de porte de munição ou de arma desmuniciada – ou mesmo de arma sem capacidade de funcionamento – não há risco potencial, falta a materialidade delitiva, pelo que não nos parece haver tipicidade. Não há bem jurídico em risco, mas apenas o descumprimento da norma. E, como salientado, o descumprimento da norma não é suficiente para a repreensão penal.

Ainda que não haja uma posição clara do STF sobre o assunto, existem algumas decisões interessantes que demonstram a necessidade de constatação da periculosidade do comportamento nos crimes de perigo abstrato. Nesse sentido, vale destacar a paradigmática a decisão da 1ª Turma do STF no HC 90.779/PR que afastou a tipicidade do comportamento de comerciantes flagrados tendo em depósito produtos fabricados para o consumo sem registro no Ministério da Saúde. O Tribunal reconheceu, nesse caso, que o crime é de perigo abstrato “mas que é preciso a demonstração de que o produto está realmente impróprio para consumo para que se caracterize o crime”. Em outras palavras, exigiu a caracterização da potencialidade lesiva para o reconhecimento do crime de perigo abstrato, no sentido aqui defendido.

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