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Pierpaolo Cruz Bottini: A coragem do Superior Tribunal de Justiça

Turmas Criminais têm chamado à legalidade os agentes estatais que ultrapassam os limites dos poderes instituídos e do uso autorizado da força

Por 

Pierpaolo Cruz Bottini*

 

Quando o assunto é o Judiciário, o STF ganha holofotes, pauta matérias e salta no centro das atenções. No entanto, às vezes vale um olhar mais cuidadoso sobre outros órgãos do mesmo Poder, talvez mais discretos, mas cuja atuação merece atenção pelos impactos em setores importantes, como no direito penal e na segurança pública.

É o caso do STJ.

Nos últimos tempos, esse tribunal tem se destacado por decisões importantes sobre a aplicação das normas criminais e os limites aos poderes do Estado. Pouco comentada, sua atuação tem pautado uma reformulação nas políticas de segurança, e merece ser conhecida e reconhecida.

Por muito tempo, o Judiciário brasileiro nem sempre atuou para evitar arbitrariedades ou atos de violência contra certas parcelas da população. Abordagens policiais sem motivo, efetuadas por autoridades incompetentes, invasões de domicílio sem fundamento — ou fundadas apenas em preconceitos raciais — acabavam legitimadas por um desdém institucional, por um discurso de que pequenas ilegalidades são aceitáveis em nome do combate ao tráfico de drogas ou a qualquer crime semelhante, por um misto de conservadorismo e preconceito direcionado aos clientes usuais do sistema penal: os pretos e os pobres.

As Turmas Criminais do STJ têm enfrentado tais situações, chamando à legalidade os agentes estatais que ultrapassam os limites dos poderes instituídos e do uso autorizado da força. Alguns exemplos ilustram bem essa atuação.

Um primeiro: a invasão de domicílio. A sacrossanta defesa da propriedade e intimidade, inviolável quando se trata da parcela mais abastada da população, nunca foi empecilho para a entrada arbitrária de agentes policiais em casas mais humildes, na periferia, longe dos olhos dos guardiões dos direitos humanos. A invasão é justificada, muitas vezes, por vagas razões, como “atitude suspeita do morador”, “denúncias anônimas”, “cheiro de drogas”, e assim por diante. A inviolabilidade domiciliar, prevista na Constituição como direito fundamental, é um castelo de cartas diante de um conceito de “flagrante delito” que abriga qualquer má-impressão que o dono da casa cause ao policial, em geral ligada à cor ou à condição social da vítima do arbítrio.

Essa carta branca para a invasão de residências tem sido rasgada por inúmeras decisões do STJ. A entrada arbitrária em domicílios já foi anulada quando embasada apenas nos maus antecedentes do suspeito, em comportamentos fora do padrão, ou no nervosismo do dono da casa, motivos que usualmente fundamentam a invasão em imóveis na periferia, mas jamais são usados para motivar conduta similar em bairros nobres das cidades.

O mesmo em relação às chamadas revistas pessoais. Assim como a invasão ao domicílio, a abordagem policial para revista é rotina nas comunidades periféricas, em regra pautada por critérios raciais. A atitude suspeita muitas vezes é ser negro, os indícios de flagrante delito derivam das vestimentas ou do local frequentado pelo abordado.

O STJ tem resistido a tais abordagens. As revistas com base no já mencionado nervosismo do suposto suspeito, fundadas em denúncias anônimas sem procedência clara, ou efetuadas por seguranças privados, sem poder de polícia, foram anuladas pela Corte.

Em outro campo, mas ainda no processo penal, o STJ tem discutido com profundidade o valor probatório do reconhecimento fotográfico, quando a vítima aponta o suposto autor do crime em fotos apresentadas pela autoridade policial. Muitas condenações injustas decorrem da má organização dessa forma de produção de prova, como a ausência de diversas outras fotos, de pessoas distintas, para comparação. O Tribunal tem exigido que todas as formalidades previstas em lei sejam cumpridas para o reconhecimento fotográfico, anulando condenações em que a prova tenha sido realizada sem os cuidados previstos na norma processual.

São apenas alguns exemplos. Há muitos outros julgados, relacionados à execução provisória da pena, ao desconto de pena pelo tempo de trabalho ou estudo, à inviabilidade de antecipar o interrogatório do réu antes de ouvidas todas as testemunhas, à aplicação de medidas cautelares penais a pessoas em situação de rua.

A atuação do STJ na defesa dos direitos fundamentais merece mais atenção. Tais decisões e precedentes são mais do que meros julgados, revelam uma mudança de postura do Tribunal, de uma passividade morna diante de ilegalidades a uma tomada de posição pela defesa intransigente do Estado de Direito, a um rechaço ao comodismo jurisprudencial, que muitas vezes deixa de conhecer e julgar brutais ilegalidades, em nome de um sanitarismo processual, de um receio do excesso de demandas. Uma reação à teimosia de alguns tribunais estaduais e federais em não observar precedentes garantistas, em nome de uma vaga autonomia, que esconde uma insistência institucional em abrigar arbitrariedades, em defender uma política de encarceramento fora da lei, com graves consequências sociais.

É tempo de reconhecer a importância dessa postura. Em uma época de heróis místicos, que empunham o arbítrio para seduzir parte da sociedade e da imprensa em nome de uma suposta luta contra o crime, que violam regras e direitos para garantir seu lugar no panteão dos magos do direito e da política, que desfazem de garantias constitucionais em troca de capas de revista.

A indignação discreta dos ministros, manifestada nos autos e nas sessões, longe dos holofotes, apartadas das manchetes e dos editoriais, são importantes esteios para a construção de um sistema voltado às garantias do cidadão no processo penal. Talvez a falta de atenção ou de aplausos público a tal postura se deva ao fato de que seus beneficiários não sejam da elite, não tenham advogados de renome, não alcancem relevância política e social suficiente para atrair olhares do grande público.

Que os abusos policiais, e o arbítrio institucional sejam objeto de atenções similares de outras cortes e magistrados. Talvez nessa trilha aberta — sempre ameaçada de ser recoberta pelas árvores do preconceito e de um conservadorismo ancorado em pensamentos superados — possam seguir juízes e outros agentes públicos, em direção a um Estado verdadeiramente democrático e de Direito, preconizado pela Constituição não como esperança ou desejo, mas como projeto de execução obrigatória a todos aqueles que exercem alguma forma de poder.

Fonte: https://oglobo.globo.com/blogs/fumus-boni-iuris/post/2023/10/pierpaolo-cruz-bottini-a-coragem-do-superior-tribunal-de-justica.ghtml
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