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Resolução do Coaf não regula a atividade advocatícia

Por Pierpaolo Cruz Bottini

As alterações na Lei de Lavagem de Dinheiro (Lei 9.613/98) trouxeram apreensão para os advogados, uma vez que seu artigo 9º, XIV, prevê que as pessoas físicas e jurídicas que prestem serviços de “assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza”, em determinadas operações, devem cadastrar informações sobre seus clientes e comunicar às autoridades públicas atos suspeitos de lavagem de dinheiro.

A questão: advogados — enquanto profissionais que exercem consultoria e aconselhamento — estão abrangidos por essa determinação legal? A questão está em aberto. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), através da Resolução 24, regulamentou parte do dispositivo em comento, criando regras de informação para consultores e conselheiros não submetidos aos órgãos de regulação próprios. Assim, a Resolução do Coaf não regula a atividade advocatícia.

Mas isso não significa que tais profissionais estejam automaticamente dispensados das obrigações previstas na lei. Quer dizer, apenas, que o Coaf não é o órgão regulador da categoria, mas a OAB — fato já disposto na própria Lei de Lavagem (art.14, §1º).

Mas a questão não é quem regulamenta o dever de prestar informações — OAB ou Coaf — mas se existe tal dever. Este o centro do debate.

A discussão não é nova. Em vários países a questão foi objeto de intensas controvérsias judiciais,[1] e diversas normas internacionais dispõem sobre o assunto.

Ao tratar do dever de comunicação, imposto aos advogados referente a atividades suspeitas de lavagem praticadas pelo cliente, a doutrina costuma distinguir duas categorias de prestação de serviço advocatício: (i) advogados de representação contenciosa, assim denominados aqueles que atuam em contencioso judicial ou extrajudicial, ou que prestam consultoria ou proferem pareceres como instrumentos para litígios judiciais ou extrajudiciais ou para determinação da situação jurídica do cliente, (ii) advogados de operações, caracterizados como aquelesque colaboram materialmente para consolidar operações financeiras, comerciais, tributárias ou similares, sem que essa atividade tenha relação direta com um litígio ou processo.[2]

A normativa internacional sobre o tema tende a exonerar os primeiros do dever de comunicação — para respeitar o princípio da confidencialidade que pauta a relação advogado/cliente — e de manter a obrigação ao segundo grupo de profissionais.

A Diretiva 2005/60/CE do Parlamento Europeu e do Conselho (2005) indica como atividade sensível à lavagem de dinheiro o trabalho dos “notários e outros profissionais forenses independentes” quando participem de transações financeiras ou empresariais e prestem serviços de consultoria fiscal onde exista um risco mais acentuado de seus serviços sejam usados de forma abusiva para efeitos de branqueamento de capitais (art. 2.º, 3, b). No entanto, o mesmo diploma exclui de forma patente alguns profissionais, nos seguintes termos: “os Estados-Membros não
são obrigados a aplicar o parágrafo anterior (obrigações referentes às comunicações obrigatórias) quando notários, membros de profissões jurídicas independentes, auditores, técnicos de contas externos ou consultores fiscais estiverem a determinar a situação jurídica de um cliente ou a exercer a sua missão de defesa ou de representação desse cliente num processo judicial ou a respeito de um processo judicial, inclusivamente quando se trate de conselhos relativos à forma de instaurar ou evitar um processo judicial.” (art. 9º, 5). O Grupo de Acção Financeira Internacional (Gafi) segue a mesma linha nas suas Recomendações 12 e 16.

Em outras palavras, segundo os documentos internacionais de referência sobre o tema, os profissionais de contencioso ou consultivo para contencioso — ou aqueles consultados para determinar a situação jurídica do cliente[3] — estão desobrigados, enquanto os demais devem prestar informações sobre atos suspeitos de lavagem de dinheiro que cheguem ao seu conhecimento.[4]

Essa é, à primeira vista, a lógica da nova Lei de Lavagem de Dinheiro brasileira. De sua redação se depreende, desde logo, que os advogados de representação contenciosa não são obrigados à comunicação.[5]Embora para tal atividade seja necessária assistência e consultoria prévia, a representação processual não consta no texto legal, e não poderia ser diferente, uma vez que o direito de defesa só pode ser efetuado diante da mais absoluta relação de confiança e transparência entre advogado e cliente.[6]

Mais. A exigência de comunicação do advogado macula o princípio de que o réu não deve ser obrigado a produzir prova contra si mesmo (nemo tenetur se detegere). De nada adianta garantir ao cidadão o direito de não autoincriminação e exigir do depositário legal de sua confiança a notificação às autoridades de qualquer irregularidade.[7]

Por outro lado, o advogado que colabora com a estruturação de operações que possam ser usadas para lavagem de dinheiro não exerce a defesa do cliente, nem se limita a apreciar sua situação jurídica, razão pela qual poderia estar incluído no rol de obrigados do inciso XIV do artigo 9º, com o dever de prestar informações às autoridades públicas sobre atos suspeitos de lavagem de dinheiro praticados pelos seus clientes.

Mas não parece esta a posição mais adequada. Ainda que a advocacia operacional não tenha relação direta com o direito de defesa, e que os serviços desenvolvidos sejam de aconselhamento e colaboração jurídica, vale lembrar que tais atividades também são privativas de advogados (art.1º da Lei 8906/94)e, portanto, existe um conflito aparente de normas entre a Lei de Lavagem de Dinheiro e o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/1994). Se a primeira exige a comunicação, o segundo prevê, em seu artigo 34, VII o dever de sigilo e a confidencialidade na relação cliente/advogado, e autoriza o profissional a não depor como testemunha sobre fato que constitua sigilo profissional (art. 7º, XIX).[8] Mais: o Código Penal prevê o delito de violação de segredo profissional (CP, art. 154). Ou seja, há um conflito entre estas normas e o suposto dever de comunicação imposto pela lei de lavagem de dinheiro.

No conflito entre tais disposições legais parece prevalecer a regra do sigilo, pelo princípio da especialidade. Fosse a Lei de Lavagem expressa sobre o dever do advogado decomunicar operações suspeitas, poder-se-ia reconhecer — é certo que com algum esforço hermenêutico — sua superveniência e a relativização do dever de sigilo previsto no Estatuto da Advocacia. Ocorre que o dever de comunicação previsto na Lei de Lavagem é genérico, direcionado às “pessoas físicas ou jurídicas que prestem, mesmo que eventualmente, serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência, de qualquer natureza” nas operações previstas no inciso XIV. Em suma, não menciona expressamente o advogado.

Como atesta Barros, “beira a insensatez pretender que o advogado vá denunciar as atividades de seu cliente às autoridades pertencentes aos organismos públicos que controlam as atividades econômico-financeiras do país”.[9]Não pode o advogado se tornar um “policial encoberto sob o manto da relação profissional”.[10]Uma coisa é a imposição do dever de abstenção ao advogado, vedando sua colaboração com qualquer ato de lavagem de dinheiro. Outra diferente é tratá-lo como informante para o combate do delito, situação que impede — de antemão — a construção de qualquer mínimo vínculo de confiança entre ele e o cliente, imprescindível para a atividade profissional.

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