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Novas regras sobre prescrição retroativa: comentários breves à Lei 12.234/2010

Autor: Pierpaolo Cruz Bottini

“Tudo passa um dia. Há de passar, também, e ser esquecida, a ameaça do Estado de apanhar o delinquente. Nem o ódio dos homens costuma ser invariavelmente implacável e irredutível”
Basileu Garcia(1)

Recentemente foi aprovada e sancionada a Lei 12.234/2010, que traz novas regras sobre prescrição da pretensão punitiva. Com alterações nos arts. 109 e 110 do Código Penal, o novo diploma legal põe limites à chamada prescrição retroativa, instituto que permitia reconhecer a prescrição entre a prática do fato e a denúncia, com base na pena aplicada pela decisão judicial condenatória posterior, após o trânsito em julgado da decisão para a acusação.
A redação anterior do Código estabelecia que a sentença com trânsito em julgado para a acusação fixava um novo patamar para o cálculo da prescrição, qual seja, a pena concretamente aplicada. Nesse caso, se entre a consumação do crime e o recebimento da denúncia, fosse constatado o decurso do prazo com base na pena concretamente aplicada, seria extinta a punibilidade do agente.

Com a nova lei, o cálculo da prescrição para o lapso entre a consumação do crime e o recebimento da denúncia se fará sempre com base no máximo da pena privativa de liberdade estabelecido pelo tipo penal. Não será mais possível aplicar a prescrição retroativa nestes casos, pela qual o cálculo se realizava com base na pena em concreto, caso fosse ultrapassado o lapso prescricional nesta etapa.

A novidade impõe reflexões.

O instituto da prescrição – admitido desde o século VIII pelo direito romano (Lex Julia de adulteriis)(2) se presta a inúmeros objetivos, dentre os quais evitar a eternização da persecução penal, garantir a duração razoável do processo (CF, art. 5.º, LXXVIII), a utilidade da pena(3), e evitar o perecimento da prova pelo decurso do tempo(4). Mas, mais do que tudo, a prescrição é uma face importante do princípio da personalidade da pena, pois a aplicação da sanção após um largo período de tempo encontraria o agente do delito modificado, distante – para melhor ou pior – do estado de espírito e de caráter daqueles que ostentava à época do crime(5). Seria como aplicar a sanção penal a alguém pelo comportamento de outro, porque, como explica Schultz, o fundamento da prescrição está em “não ser o homem que está diante do tribunal aquele que praticou o delito”(6).

O cálculo da prescrição se faz com base na gravidade do delito. Quanto mais desvalorada a conduta e lesivo o resultado, mais tempo será exigido para a extinção da punibilidade, em natural busca de proporcionalidade. Antes da definição da pena concretamente cabível ao autor o legislador decidiu que a base para o cálculo da prescrição será o máximo de pena prevista nos tipos penais. Parece lógica tal construção, vez que não há outro parâmetro para aferir a gravidade do crime que sua gravidade em abstrato.

Por outro lado, após o trânsito em julgado para a acusação, o patamar máximo da pena é alterado. A partir deste momento, a extensão ou modalidade da sanção poderá ser diminuída ou abrandada, de acordo com o sucesso dos recursos impetrados pela defesa, mas jamais aumentada, em razão da vedação da reformatio in pejus. Assim, a pena máxima a ser aplicada – caso a defesa fracasse em todas as tentativas de diminuir sua extensão – será a pena concretamente aplicada pela decisão da qual a acusação não recorreu. O grau intransponível e máximo da pena será aquele fixado pela sentença ou acórdão que transitou em julgado para a acusação.

O fundamento desta nova medida de prescrição é compatibilizar o cálculo da extinção da punibilidade com o grau de culpabilidade do autor e de reprovabilidade do comportamento reconhecidos concretamente. Se o magistrado – ou o Tribunal – entendeu que o agente merece pena menor que o máximo previsto pelo tipo penal, e a acusação concordou, é evidente que o tempo de prescrição será menor, calculado pelo novo patamar máximo possível da pena(7).

Pois bem, com base nesta ideia de proporcionalidade, que o legislador de 1984 estabeleceu a chamada prescrição retroativa. Não se tratava de uma novidade. Já em 1923, o Decreto 4780 previa que a prescrição seria calculada pelo “máximo da pena abstractamente comminada na lei ou a que for pedida no libello, ou, finalmente, a que for imposta na sentença de que somente o réo houver recorrido” (art. 35)(8). Também o STF já havia assentado a prescrição retroativa desde 1961, diante de reflexões do ministro Nelson Hungria sobre a incoerência de calcular a prescrição pela pena in abstracto diante de uma pena concreta estabelecida em decisão transitada em julgado para a acusação (HC 38.186).

Inicialmente, a posição do STF reconhecia a prescrição retroativa apenas para o período entre o recebimento da denúncia e a decisão condenatória, mas com o passar dos anos acabou por reconhecer a incoerência de negar a prescrição retroativa ao período entre o cometimento do fato e o recebimento de denúncia, em voto notável de Vitor Nunes Leal, em 1963, no HC 40.003: “Pergunto: o efeito retroativo da prescrição pela pena concreta alcança também o lapso de tempo decorrido entre o delito e o oferecimento da denúncia? Parece-me que sim, porque o recebimento da denúncia interrompe a prescrição, mas no pressuposto de que não se tenha consumado, tal como acontece com a sentença condenatória, para quem admito a prescrição pela pena concreta. Num e noutro caso, o que está em jogo é o efeito retroativo da prescrição, alcançando o período transcorrido anteriormente ao ato interruptivo. Se esse efeito retroativo se produz em relação à sentença condenatória, que interromperia a prescrição não consumada, o mesmo se deve dizer do recebimento da denúncia, que só interromperia a prescrição, quando ainda não verificada”. (STF, HC 40.003, Rel. Min. Vitor Nunes Leal, p. 18.09.1963).

O raciocínio é evidente: se há um novo patamar máximo de pena fixado pelo juiz, fundado na culpabilidade do agente e na reprovação do comportamento, constatados na instrução, é com base nele que serão estabelecidos os prazos de prescrição, que valem até mesmo para o período entre o cometimento de delito e o recebimento da denúncia – período para o qual valia a prescrição com base na pena máxima apenas diante da ausência de elementos para fixação da pena concreta.

É justamente esta prescrição retroativa válida para o espaço entre o fato e o recebimento da denúncia, consagrada no mesmo ano pelo STF na súmula 146(9), e posteriormente pelo legislador de 1984, que fixou a regra da prescrição retroativa no § 2.º do art. 110 do Código Penal, que foi abolida pela lei em comento, ao mencionar expressamente que a prescrição não pode “em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa”.
Indaga-se, em primeiro lugar, por que a pena concreta fixada pelo magistrado pode retroagir para o cálculo da prescrição entre o recebimento da denúncia e a sentença condenatória, mas não entre a prática do fato e a denúncia? Qual o elemento distintivo que justifica a diferença de tratamento?

Por outro lado, negar efeito retroativo à pena concreta para o cálculo da prescrição parece ferir os princípios da culpabilidade, da isonomia e da proporcionalidade. Imaginemos que duas pessoas pratiquem o crime de furto, uma delas é primária, e agiu contra vítima adulta, em situação de normalidade institucional, tendo reparado o dano após o inicio do processo e confessado espontaneamente a prática do delito; outra é reincidente, agiu contra criança durante calamidade pública, não reparou o dano nem confessou a prática do delito.

É evidente aqui a diferença nos graus de culpabilidade e de reprovabilidade da conduta, embora ambos tenham incidido no mesmo tipo penal. A pena concreta será distinta, menor para o primeiro caso, maior para o segundo, nos termos do art. 59 e seguintes do Código Penal. Da mesma forma, o período para prescrição será distinto após a condenação transitada em julgado para a acusação, pois distinto o desvalor dos comportamentos. Também será diferente o prazo prescricional aplicado entre o recebimento da denúncia e a decisão condenatória, porque esta prescrição retroativa está em vigor.

No entanto, o prazo para prescrição entre a prática do ato e o recebimento da denúncia será idêntico para os dois delitos, pautado pelo máximo da pena em abstrato. Mas não há razão plausível para que o tempo de prescrição contado após o recebimento da denúncia seja diferente daquele contado antes deste fato.

Não se questiona aqui, no entanto, a pertinência dos prazos prescricionais, a dificuldade de investigações, e sua eventual contribuição para a impunidade. O que se discute, em verdade, é a racionalidade de estabelecer prazos prescricionais distintos para situações factualmente idênticas – o mesmo crime antes e depois do recebimento da denúncia – e de estabelecer prazos idênticos para situações factualmente distintas – crimes diferentes, praticados por agentes distintos, com culpabilidade e reprovabilidade em graus diferenciados terão o mesmo
prazo prescricional regulado pelo máximo da pena em abstrato. Aqui vale a lição de Alberto Silva Franco: “ocorre desrespeito ao principio da igualdade quando situações fáticas iguais são arbitrariamente cuidadas pelo legislador, como desiguais ou situações fáticas desiguais recebem, de modo arbitrário, tratamento igual”(10).

Há ainda uma questão em aberto, não enfrentada pelo texto legal, referente à hipótese de eventual desclassificação do delito pela decisão judicial. Imaginemos que alguém seja denunciado pela prática de lesões corporais graves – e a denúncia seja recebida – e, após a instrução, o magistrado entenda que se trata em verdade de lesões corporais leves. Caso tal decisão transite em julgado para a acusação, o lapso de prescrição aplicável para o período entre o recebimento da denúncia e a decisão será referente à pena de lesão corporal leve, e o prazo prescricional válido para o momento do ato até o recebimento da denúncia será o de lesões corporais graves – situação inconcebível no regime anterior, em que todos os prazos passavam a ser regulados pela pena em concreto do tipo penal da condenação.

Enfim, pode-se questionar a prescrição, os prazos, a morosidade judicial, e sua relação com a impunidade. O que não parece legítimo é criar distorções que comprometam o princípio da proporcionalidade, fazendo incidir de forma idêntica a norma penal sobre comportamentos ontologicamente diferentes. A nova regra compromete a isonomia e o princípio da culpabilidade (CF, art. 5.º, XLV), pois o tempo de prescrição deixa de ter relação com o contexto do crime concreto e passa a ser pautado apenas pela pena genérica, abstrata, mesmo após a instrução e a individualização do tamanho da resposta penal.

A política criminal não pode transigir com princípios tão elementares, sob pena da banalização do direito penal e da turbação da racionalidade de um sistema que, pela sua violência e agressividade, exige serenidade e cautela daqueles que operam seus instrumentos.

Notas

(1) Instituições de direito penal. Vol. I, Tomo II, 7. ed., Coord. Maira Rocha Machado; Denise Garcia. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 369

(2) LISZT, Franz von. Tratado de direito penal allemão. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Co, 1899, p.478

(3) WELZEL. Derecho penal alemán, 11. ed., trad.Juan Bustos Ramirez. Santiago: Juridica del Chile, 1970, p. 359.

(4) Para uma visão abrangente sobre as teorias fundamentadoras da prescrição, vide MACHADO, Fábio Guedes de Paula. Prescrição penal. Prescrição funcionalista. São Paulo: RT, 2000, p.88.

(5) MAGALHÃES NORONHA. Direito penal,vol.1. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 413

(6) Citado em ZAFFARONI. Manual de direito penal brasileiro. Parte Geral,3. ed. São Paulo: RT, 2001, p. 753.

(7) BETANHO e ZILLI. Código Penal e sua interpretação, São Paulo: RT, 2007, p. 567.

(8) SIQUEIRA, Galdino. Direito penal brazileiro. Brasília:Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 737.

(9) Crimes hediondos, 5. ed., São Paulo: RT, 2004, p. 63.

(10) A prescrição da ação penal regula-se pela pena concretizada na sentença, quando não há recurso da acusação.

Pierpaolo Cruz Bottini

Advogado, professor-doutor da USP e coordenador regional do IBCCRIM.

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