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A possibilidade de prisão a partir da condenação em segunda instância: inconstitucionalidade, ou medida imprescindível no combate à corrupção e impunidade dos poderosos?

Luciano Rosa Vicente

Publicado em 04/2018. Elaborado em 04/2018.

Poucas vezes os brasileiros se interessaram tanto por um embate de teses jurídicas quanto nestes primeiros meses de 2018, quando retornou ao palco a possibilidade de prisão a partir da decisão de segunda instância, fazendo com que parcela da população reconheça mais ministros do STF que jogadores da seleção de futebol, em pleno ano de copa do mundo. Impulsionada pela condenação do ex-presidente Lula, em 24/01/2018, no TRF4, e a iminente possibilidade de sua prisão, a sociedade brasileira aguardou ansiosa o posicionamento definitivo da Corte Suprema sobre o palpitante tema.

Mas por que essa questão está em ebulição se resta sedimentado em caracteres irrecusáveis no art. 5º, LVII, da CF/88 [1] que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, e no art. 283 do CPP [2] que “ninguém poderá ser preso senão … em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado …”? Para buscar a resposta, é produtivo volver o olhar ao passado, porque até 2009 o STF entendia que a presunção de inocência não impedia a execução da pena decidida em 2º grau, conforme verte dos HC 71.723/SP [3]; HC 79.814/SP [4]; HC 80.174/SP [5]; RHC 84.846/RS [6]; RHC 85.024/RJ [7]; HC 91.675/PR [8]; e HC 70.662/RN [9].

Foi em 05/02/2009, ao julgar o HC 84.078/MG [10], do réu Omar Coelho Vitor, condenado a 7 anos e 6 meses de reclusão por tentativa de homicídio, que o STF mudou de entendimento. Após a condenação na 1ª instância, o juiz autorizou o recurso em liberdade, condicionando a prisão ao trânsito em julgado do processo. Entretanto, o TJ/MG, analisando recurso do Ministério Público, determinou a imediata prisão do réu e a decisão foi mantida no STJ, mas o STF reformou-a por 7 votos a 4. Votaram a favor do réu e da prisão somente após o trânsito em julgado os ministros Eros Grau, Celso de Melo, Marco Aurélio, Ayres Brito, Peluso, Lewandowski e Gilmar Mendes. A favor da prisão imediata foram Menezes Direito, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Carmem Lúcia.

Desde então, os réus condenados em 1ª e 2ª instâncias navegavam nas remansosas águas de quem só pode ser privado da liberdade, em caráter definitivo, após o trânsito em julgado da sentença. Todavia, o dia 17/02/2016 trouxe ventos tormentosos aos que aguardavam em sossegada liberdade o lento julgamento definitivo de suas condenações: nesse dia, o STF negou liberdade ao réu nos autos do HC nº 126.292/SP [11], revendo a posição placitada desde 2009, numa votação com placar novamente de 7 x 4, mas desta vez em sentido contrário. Os votos vencedores foram dos ministros Teori, Fachin, Barroso, Fux, Toffoli, Carmen Lúcia e Gilmar Mendes, portanto este último mudou de posição em relação ao julgamento anterior.

Inconformados com essa decisão, o Partido Nacional Ecológico – PEN e o Conselho Federal da OAB ingressaram com as Ações Declaratórias de Constitucionalidade – ADC 43 [12] e 44 [13], pedindo a concessão de medida cautelar suspendendo a execução antecipada das penas fixadas por decisões de 2ª instância. Argumentaram que o julgamento daquele HC 126.292/SP vinha gerando controvérsia jurisprudencial sobre o princípio constitucional da presunção de inocência pois, embora não vinculante, tribunais de todo o país passaram a se posicionar favoravelmente à prisão antes do trânsito em julgado da sentença, desrespeitando comandos de envergadura constitucional e legal.

O Plenário da Corte indeferiu as medidas cautelares no dia 05/10/2016, ratificando aquela decisão de 17/02/2016, por um apertado placar de 6 x 5 [12 e 13]. A favor da possibilidade de prisão a partir da decisão de 2ª instância foram os ministros Barroso, Carmen Lúcia, Fachin, Gilmar Mendes, Fux e Teori; e contra foram Celso de Melo, Lewandowski, Marco Aurélio, Rosa Weber e Toffoli. Para correta compreensão do debate agitado no indeferimento da medida cautelar pleiteada é importante conhecer os argumentos de cada ministro, iniciando-se pelos que indeferiram, ou seja, que votaram favoravelmente à possibilidade de prisão a partir de decisão colegiada.

O ministro Barroso sustentou a legitimidade da execução provisória após decisão colegiada para que se garanta a efetividade do direito penal e dos bens jurídicos que ele tutela. Para ele, a presunção de inocência é princípio, não regra, por isso pode ser sopesada com outros princípios constitucionais de mesma envergadura. O livre docente e doutor em direito pela UERJ [15], alegou que o entendimento que a Corte passou a adotar a partir de 2009 era “grosseiramente injusto”, e produziu consequências “extremamente negativas e constatáveis a olho nu”, como o ajuizamento de sucessivos recursos para retardar a decisão definitiva, que intensificou a seletividade do sistema penal, aumentando o descrédito da sociedade na Justiça.

A presidente da Corte, Carmen Lúcia, negou a cautelar relembrando que num voto que lavrou em 2010 sobre esse tema, ponderou que quando a CF/88 prevê que ninguém pode ser considerado culpado até a decisão irrecorrível, não está excluindo a possibilidade de se iniciar a execução da pena. Segundo a mestre em direito pela UFMG [16], tendo-se apreciado a prova e resultando em duas condenações, a prisão do réu não é arbitrária, pois se de uma parte tem-se a presunção de inocência, de outra é imperioso preservar o sistema e sua confiabilidade, porque “a comunidade quer uma resposta, e quer obtê-la com uma duração razoável do processo”.

O ministro Fachin, também contrário à concessão da cautelar, deu ao artigo 283 do CPP interpretação conforme a Constituição para afastar aquela segundo a qual a norma impede o início da execução da pena após a primeira decisão colegiada, pois o início da execução da punição após a decisão de 2º grau está alinhado com a CF/88, salvo quando concedido efeito suspensivo aos recursos às cortes superiores. Conforme Fachin, a CF/88 não se presta a dar uma terceira ou quarta chance para rever-se uma decisão que o réu considera injusta. Para o mestre (1986) e doutor (1991) em direito pela PUC/SP [17], o acesso individual às instâncias extraordinárias serve para permitir ao STF e STJ uniformizarem a interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais, por isso, retroceder à compreensão anterior ao julgamento do HC 126.292/SP é inadequado e não se ajusta às competências constitucionais daquelas duas cortes.

Gilmar Mendes também divergiu do relator Marco Aurélio, sustentando que a execução da pena a partir da decisão de segunda instância não deve ser tida como incompatível com o princípio da presunção de inocência. Salientou que se houver abuso na condenação, os tribunais dispõem de instrumentos para bloquear a execução antecipada, e a defesa tem meios como o recurso extraordinário, com pedido de efeito suspensivo, e o habeas corpus. Por fim, o mestre em direito pela UNB e doutor pela Universidade de Münster, na Alemanha [18], acrescentou que o sistema jurídico estabelece um enfraquecimento progressivo da presunção de inocência com o avanço do processo criminal: “há diferença entre investigado, denunciado, condenado e condenado em segundo grau”, por isso que países muito rígidos no respeito aos direitos fundamentais aceitam a prisão após decisão de segundo grau.

Luiz Fux, que também divergiu do relator, observou que o STJ e o STF aceitam a suspensão de ofício, por intermédio de habeas corpus, de condenações em situações excepcionais, havendo, assim, meios de controlar as condenações de 2º grau que afrontem a CF/88 ou a lei. Segundo o ministro faixa preta de jiu-jitsu, e doutor em direito pela UERJ (2009), da qual é professor desde 1995 [19], o legislador constituinte não intencionava impedir a prisão após a decisão de segunda instância: “se o quisesse, teria feito no inciso LXI, que trata das hipóteses de prisão”. Quanto à necessidade de dar-se efetividade à Justiça, destacou que “estamos tão preocupados com o direito fundamental do acusado que nos esquecemos do direito fundamental da sociedade, que tem a prerrogativa de ver aplicada sua ordem penal”.

Teori Zavascki ratificou o voto que talhou na condição de relator daquele HC 126.292/SP, no qual sustentou que o princípio da presunção de inocência não obsta o cumprimento da pena, relembrando que era esse o entendimento do STF até 2009. Segundo o saudoso mestre (2000) e doutor (2005) em direito pela UFRGS, onde lecionou de 1987 a 2005 e de 2013 até sua partida em 2017 [20], “a dignidade defensiva dos acusados deve ser calibrada, em termos de processo, a partir das expectativas mínimas de justiça depositadas no sistema criminal do país”. De acordo com seu voto, se por um lado a presunção da inocência deve ofertar meios para que o réu exercite seu lídimo direito de defesa, por outro ela não pode esvaziar o sentido de justiça: “o processo penal deve ser minimamente capaz de garantir a sua finalidade última de pacificação social”.

O outro grupo, dos cinco ministros derrotados na apertada votação, que foram pela concessão da medida cautelar, reconhecendo que a prisão antes do trânsito em julgado da sentença condenatória fere a CF/88, seguiu o voto relator, ministro Marco Aurélio. O carioca, mestre (1982) em direito privado pela UFRJ [21], argumentou que o artigo 283 do CPP está de par com o princípio constitucional da não culpabilidade, segundo o qual ninguém pode ser considerado culpado antes da derradeira sentença condenatória, porque a literalidade dos dispositivos constitucional e legal não dá margem a dúvidas de que a culpa só se confirma com o julgamento definitivo: “o dispositivo não abre campo a controvérsias semânticas”. De acordo com o relator, admitir a prisão após decisão de 2º grau é inverter a ordem natural do processo criminal, que reclama primeiro a formação da culpa para só depois o encarceramento.

O decano Celso de Melo seguiu o relator, sustentando a incompatibilidade da execução provisória da pena com o direito fundamental de presunção de inocência gizado na CF/88 e no CPP. De acordo com o ministro, a presunção de inocência é conquista histórica dos cidadãos na luta contra o Estado opressor e tem prevalecido nas sociedades civilizadas como preceito fundamental e axioma do respeito à dignidade da pessoa humana. De acordo com o bacharel em direito pela USP (1969), e membro do Ministério Público de SP de 1970 até sua posse no STF em 1989 [22], a reversão da posição timbrada em 2009 “reflete preocupante inflexão hermenêutica de índole regressista no plano sensível dos direitos e garantias individuais, retardando o avanço de uma agenda judiciária concretizadora das liberdades fundamentais”. Nesse mesmo sentido, arrematou que “se reforme o sistema processual, que se confira mais racionalidade ao modelo recursal, mas sem golpear um dos direitos fundamentais a que fazem jus os cidadãos de uma República”.

Lewandowski, doutor em direito pela USP (1982) e professor daquela escola desde 1978 [23], registrou que o art. 5º, LVII, da CF/88, é reluzente ao prescrever que a presunção de inocência respira até o trânsito em julgado: “não vejo como fazer uma interpretação contrária a esse dispositivo tão taxativo”. Segundo ele, a presunção de inocência e a obrigação de motivar a decisão para prender um cidadão são motivos suficientes para deferir a cautelar e declarar a total constitucionalidade do art. 283 do CPP.

A ministra Rosa Weber foi de par com o relator, considerando que o artigo 283 do CPP retrata o teor dos incisos LVII e LXI do art. 5º da CF/88, que tratam dos direitos e garantias individuais: “não posso me afastar da clareza do texto constitucional”. Para a gaúcha que ingressou na magistratura federal em 1976, como juíza do trabalho substituta [24], a CF/88 é muito clara ao vincular o princípio da presunção de inocência a uma condenação transitada em julgado: “não vejo como se possa chegar a uma interpretação diversa”.

Por fim, o ministro Toffoli seguiu parcialmente o relator, acatando sua posição subsidiária, para que se suspenda a execução da pena enquanto houver pendência de recurso especial ao STJ, mas não de recurso extraordinário ao STF. Escorou sua posição no fato de que o requisito de repercussão geral dificultou a admissão do recurso extraordinário em matéria penal que tende a tratar de tema de natureza individual e não de natureza geral, o que não ocorre com o recurso especial, que abrange situações mais comuns de conflito de entendimento entre tribunais. Segundo o bacharel em direito pela USP [25], a CF/88 exige a certeza de culpa para que se aplique a pena, e os abusos da faculdade de recorrer podem ser coibidos pelos tribunais superiores.

A partir das sínteses dos votos plasmados acima, pode-se ter boa compreensão das duas teses agitadas no julgamento das cautelares pleiteadas nas ADC 23 e 24: de um lado os ministros vencidos Celso de Melo, Lewandowski, Marco Aurélio, Rosa Weber e Toffoli, defendendo que não há espaço para transbordar do texto constitucional e legal, que são cristalinos ao prescreverem que ninguém pode ser considerado culpado e preso antes do trânsito em julgado da sentença. No pólo oposto Barroso, Carmem Lúcia, Fachin, Fux, Gilmar Mendes e Teori, sustentando que a prisão após a decisão de 2º grau não fere a presunção de inocência prevista em seara constitucional e legal, e evita que os processos se arrastem indefinidamente sem punição, desacreditando a Justiça brasileira.

Interessante notar que no salutar embate de idéias, por meio do qual se cristaliza o direito, ambas as correntes invocam os instrumentos recursais à disposição dos litigantes para enfrentarem eventuais arbitrariedades estatais. Enquanto o ministro Toffoli, do grupo que defende a prisão somente após o trânsito em julgado, argumenta que os sucessivos recursos procrastinatórios podem ser combatidos pelo Ministério Público nos tribunais superiores, o ministro Fux, filiado à tese contrária, alega que são os réus que podem recorrer de prisões arbitrárias àqueles tribunais.

Conforme mencionado, essa última decisão do STF, que ratificou a possibilidade de prisão a partir da 1ª decisão colegiada foi dada em 05/10/2016, no julgamento do pedido de cautelar das ADC 43 e 44, mas a decisão do mérito queda-se pendente de julgamento, embora o ministro relator Marco Aurélio já as tenha disponibilizado em 05/12/2017 [26]. Ocorre que depois de superado o recesso forense (20/12 a 06/01), durante as férias coletivas dos ministros (7 a 31/01/2018) [27], no dia 24/01/2018 o ex-presidente Lula foi condenado em 2ª instância pelo TRF4 a 12 anos e um mês de reclusão [28].

A partir daí, a presidente Carmen Lúcia passou a ser questionada sobre quando colocaria em pauta o julgamento de mérito das ADC, pois se não fossem pautadas o ex-presidente poderia ser preso após o julgamento dos embargos declaratórios interpostos pela sua defesa no TRF4. A esses questionamentos, a presidente foi peremptória durante evento organizado pelo jornalista Fernando Rodrigues, do site Poder360: “não sei por que um caso específico (do ex-presidente petista) geraria uma pauta diferente. Seria apequenar muito o Supremo. Não conversei sobre isso com ninguém” [29].

Mas as pressões aumentaram, inclusive de ministros da corrente que defende a prisão apenas depois do trânsito em julgado da sentença, como o relator das ADC, Marco Aurélio, que admitiu que poderia apresentar uma questão de ordem para que se pautasse o julgamento [30]. Mas não foi necessário, porque na sessão do dia 21/3/2018 a presidente pautou o HC preventivo 152.752/PR, do líder petista, que envolve as mesmas teses das ADC, para julgamento no dia seguinte, 22/3/2018. No aludido HC, a defesa de Lula busca evitar a execução provisória da pena em face da confirmação pelo TRF4 de sua condenação pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Na sessão, os ministros decidiram suspender o julgamento até o dia 04/4/2018, e diante dessa decisão a defesa solicitou a concessão de cautelar para que não houvesse prisão até a conclusão do julgamento desse HC. Por maioria, o Pleno acolheu o pedido, com o entendimento de que Lula não poderia ficar nesse intervalo sujeito à prisão [31]. A maioria dos ministros seguiu a ministra Rosa Weber, para quem, se o julgamento foi suspenso, deve-se impedir as consequências do adiamento: “é inviável atribuir a um jurisdicionado (qualquer jurisdicionado, independentemente de quem está sendo tratado nesse processo) o ônus da nossa inviabilidade de julgá-lo com maior celeridade”. Seguiram-na os ministros Toffoli, Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello.

Sem o enfrentamento da questão objeto deste artigo naquele dia 22/3/2018, sobreveio o julgamento dos embargos declaratórios de Lula no TRF4, que no dia 26/3/2018 rejeitou-os por unanimidade [32], por isso o ex-presidente e o país aguardaram ansiosos a sessão de 04/4/2018 no STF para saber como os ministros se posicionariam diante do efervescente tema. Recorde-se que o placar estava 6 x 5 para a corrente que considera possível a prisão antes de esgotados todos os recursos, mas o ministro Gilmar Mendes, que estava neste grupo, já havia manifestado sua intenção de mudar de banda [33], e se isso se confirmasse haveria uma inversão no placar para retornar-se à posição vigente de 2009 a 2016, de que só após o trânsito em julgado é cabível a prisão definitiva.

Por fim, em 04/4/2018 o STF se debruçou sobre o aludido HC preventivo e rediscutiu o tema aqui em escrutínio, numa longa sessão que se estendeu até a primeira hora do dia seguinte. Venceram, novamente, os ministros favoráveis à possibilidade de prisão a partir da decisão de 2º grau, com aquele mesmo placar de 6 x 5, mas com dois câmbios de posição. Gilmar Mendes, que no julgamento das liminares das ADC votou pela possibilidade de prisão, confirmou o que vinha sinalizando em seminários e entrevistas: mudou de time. Em sentido contrário, Rosa Weber, que naquela ocasião votou pela prisão somente após o trânsito em julgado, desta feita posicionou-se no polo oposto. Justificou que, embora sua convicção pessoal seja de que a CF/88 é clara ao prever a presunção de inocência até o trânsito em julgado, respeita e privilegia a colegialidade, por isso nos casos que se têm apresentado na sua Turma em regra tem seguido a compreensão atualmente vigente na Corte.

Até aqui se tratou do histórico do tema e do posicionamento dos ministros na gangorra jurisprudencial do STF, mas em assunto tão sensível como sói ser o agitado neste artigo não se pode apoucar o valor dos posicionamentos doutrinários e institucionais. A Associação dos Juízes Federais do Brasil – Ajufe é pela possibilidade de prisão ainda que pendentes os recursos ao STJ e STF, tanto que apresentou ao Senado um anteprojeto de lei que reforma o CPP para permitir a prisão de condenados por crimes graves em 2ª instância ou pelo Tribunal do Júri, impondo-lhes aguardar presos o julgamento de seus recursos. [34].

No Senado, a proposta foi acolhida e assinada pelos senadores Roberto Requião (MDB-PR), Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), Álvaro Dias (PV-PR) e Ricardo Ferraço (PMDB-ES), convertendo-se no PLS 402/2015, que está tramitando e em 20/3/2018 encontrava-se disponível para a pauta na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania [35]. Em diversos trechos da justificativa do PLS, os autores referem-se à contribuição da Ajufe para a discussão do tema, salientando que não é razoável converter uma condenação criminal, ainda que pendente de recursos, num “nada jurídico, como se não representasse qualquer alteração na situação jurídica do acusado”. A justificativa ainda alude aos termos originais do projeto de lei, que foram concebidos pela Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – (Enccla).

A Associação dos Magistrado Brasileiros – AMB também é favorável à medida, conforme notícia veiculada no seu sítio eletrônico oficial [36]. Segundo o seu presidente, juiz João Ricardo Costa, “a decisão do Supremo que possibilita a execução da pena privativa de liberdade no julgamento do segundo grau se apresentou como necessária diante da esquizofrenia que é o sistema recursal brasileiro, que tem patrocinado a impunidade no Brasil”. Chama a atenção a palavra forte que o presidente usou para se referir ao sistema recursal brasileiro: “esquizofrenia”, sendo de se concordar com o magistrado quando se rememora casos como o do deputado federal Paulo Maluf, finalmente preso em 20/12/2017, por ordem do ministro Fachin, por receber propina das empreiteiras Mendes Júnior e OAS quando era prefeito de SP entre 1993 e 1996, portanto há mais de 20 anos [37].

A Associação Nacional dos Procuradores da República – ANPR anda de braços com a AMB e a Ajufe nesse efervescente debate, conforme divulgou no seu sítio eletrônico oficial a Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro – Amaerj. De acordo com a notícia, a ANPR comemorou aquela decisão do STF, de 17/02/2016, que mudou o entendimento esposado desde 2009. Segundo a notícia, a ANPR considerou que a nova posição da Corte “garantirá maior eficiência e celeridade à prestação jurisdicional, bem como configura um marco importante para o fim da impunidade e da ineficácia da Justiça criminal no país”, e acrescenta que se trata de uma decisão histórica que “corrobora a garantia individual ao duplo grau de jurisdição, prevista na Convenção Americana de Direitos Humanos e no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos de 1966″ [38]. Nessa quadra, no dia 02/4/2018, juízes, desembargadores e procuradores apresentaram no STF um abaixo-assinado com mais de 5 mil assinaturas a favor das suas posições [38.1].

A mesma Amaerj, que veiculou os posicionamentos da ANPR, AMB e Ajufe, favoráveis à prisão a partir da decisão 2º grau, também veiculou, na mesma matéria, os entendimentos contrários, da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais – Anadef e da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, que criticaram a novel posição do STF, classificando como “preocupante” a execução provisória da pena. A Anadef denominou a decisão de “retrocesso jurídico jurisprudencial”, argumentando que “foi uma derrota para a Constituição, para o Estado Democrático, para o garantismo penal e, sobretudo, para o próprio Direito”, e finalizou: “um triste passo foi dado ontem, trazendo decepção aos que têm como missão a defesa dos direitos humanos, dos direitos e garantias fundamentais e, sem compromisso com a impunidade, a defesa intransigente do respeito à Constituição para todos”.

Essa compreensão é a mesma de Fernando Capez (2013, p. 555), para quem “por força do art. 5º, LVII, da CF, o lançamento do réu no rol dos culpados jamais poderia ocorrer antes do trânsito em julgado da decisão final” [39]. Luiz Flávio Gomes pensa um pouco diferente: embora concorde com a execução imediata e provisória da pena após dois graus de jurisdição, acredita na necessidade de uma emenda constitucional que explique o conceito de trânsito em julgado, que teria o seguinte teor: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Considera-se transitada em julgado a decisão depois da análise dos fatos, das provas e do direito em dois graus de jurisdição. Os recursos extraordinários (RE e REsp) possuem efeitos rescisórios” [40].

Paulo César Busato (2016, p. 55-76), depois de dissecar a decisão do STF que autorizou a prisão provisória antes de esgotados os recursos, sopesando os argumentos de ambas as correntes, e de analisar o antagonismo das posições de magistrados e promotores x advogados e defensores, concluiu que “não tenho dúvidas de que a execução de pena só deveria começar depois do trânsito em julgado de uma decisão. Afinal, uma das garantias principais, derivada do princípio de culpabilidade, é a necessidade de uma sentença condenatória firme para definir a culpa e permitir a imposição de uma pena”. Em arremate, o professor defende que só se pode pensar em execução de condenação imodificável, pois não se pode afirmar que se trata de um culpado enquanto não esgotada a via recursal” [41].

René Ariel Dotti também é contra prender enquanto pendentes os recursos especial e extraordinário, e criticou veementemente a decisão do STF ao afirmar que a Corte de uma só “penada” afrontou o princípio constitucional da presunção de inocência e os princípios de independência e harmonia entre os poderes do Estado, essenciais em um Estado Democrático de Direito [42]. Tocam pela mesma partitura Pierpaolo Bottini [43], Guilherme Nucci [44], Lênio Luiz Streck [45], Kildare Gonçalves Carvalho [46] e Luiz Flávio Borges D’Urso [47].

Já Ada Pellegrini Grinover corria por outra raia, pois quando perguntada pela Revista Consultor Jurídico se o STF fez bem em mudar a posição que vinha tendo desde 2009 respondeu que “muito bem”. Para a saudosa jurista, a lei deve ser aplicada conforme as mudanças da realidade e quando a CF/88 foi promulgada, ela precisava ser libertária e garantista, e acabou criando tantos direitos que tudo foi constitucionalizado e pode desaguar no STF. A professora entendia que a situação era outra quando se interpretou como presunção de inocência a impossibilidade de prisão depois da 1ª sentença colegiada, porque os processos penais não duravam tanto tempo e a criminalidade tinha outra roupagem, não era uma criminalidade econômica, mas a do ladrão de galinhas, do assassino passional [48].

Depois de apresentadas as posições de todos os ministros do STF desde 2009, das associações de magistrados, procuradores, defensores, advogados e de dez eminentes juristas brasileiros, constata-se que há uma divisão muito bem delineada: as associações de defensores e de advogados estão de par com nove dos dez juristas pesquisados e com os ministros contrários à prisão provisória antes de esgotados todos os recursos. Argumentam que viola a presunção de inocência, enraizada em seara constitucional e legal, na roupagem do art. 5º, LVII, da CF/88, e do art. 283 do CPP; e as associações de magistrados e procuradores concordam com Ada Pellegrine Grinover e com os ministros favoráveis à possibilidade de prisão desde a 1ª decisão colegiada. Dessa balança equilibrada de opiniões tão fundamentadas e respeitáveis se extrai a dificuldade do enfrentamento desse tema de relevante interesse nacional.

Alguns protagonistas desse debate defendem uma emenda constitucional para prever essa possibilidade que o STF etiquetou na nossa legislação por meio de uma decisão apertada na estreita via do habeas corpus, mas outros entendem que como a presunção de inocência é cláusula pétrea, só poderia vingar em novo texto constitucional, o que já se trata de outro debate. O que de fato há são duas PEC tramitando no Congresso Nacional: PEC 15/2011, no Senado; e PEC 410/2018, na Câmara. A primeira teve gênese na caneta do então presidente do STF, César Peluso, por isso apodada “PEC do Peluso”, mas oficialmente “PEC dos Recursos” [49], e está estacionada no tapete azul desde 19/01/2015, na situação “pronto para deliberação do plenário” [50]. A segunda, PEC 410/2018, foi apresentada no plenário da Câmara recentemente, no dia 27/3/2018 [51], pelo deputado Alex Manente (PPS/SP), da qual não se espera melhor sorte.

Tudo posto e sopesado, para concluir, enfrentemos a pergunta que dá nome a este artigo: a possibilidade de prisão a partir da condenação em 2ª instância trata-se de inconstitucionalidade, ou medida imprescindível no combate à corrupção e impunidade dos poderosos? Com todo respeito que merecem os militantes da 1ª hipótese, é de se concordar com Ada Pellegrine Grinover para reconhecer que vivemos tempos diversos daqueles em que se talhou a CF/88, e que se depender do nosso plantel parlamentar jamais será emendada para agasalhar a possibilidade da prisão em estudo.

O Brasil tem evoluído, tanto que se alguém vaticinasse há três anos que políticos poderosos como Eduardo Cunha, ex presidente da câmara dos deputados, responsável direto pelo impeachment de uma presidente da República, estaria preso sem perspectiva de liberdade, ninguém acreditaria. Assim como não acreditariam que Sérgio Cabral, criador das UPPs no RJ, cogitado para concorrer a vice-presidente da República na chapa de Dilma Roussef, ex-governador do RJ, estaria na mesma situação de Cunha.

Os nomes são vários: José Dirceu, que era o sucessor natural de Lula na presidência da República antes de cair nas redes do mensalão e petrolão; André vargas e João Argolo, ex-deputados federais; João Vacari Neto, ex-tesoureito do PT; Antônio Palocci, ex-deputado federal e ex-ministro da Fazenda mais forte desde Delfin Neto; Pedro Correa, ex-deputado federal; Luiz Estevão e Gim Argelo, ex-senadores. Isso para mencionar só os políticos, porque empresários poderosos antes inatingíveis hoje os acompanham nas carceragens, tanto quanto acompanhavam na sangria dos cofres públicos.

Lembremos do completo fracasso das operações Satiagraha (2004), que de concreto só pariu a demissão do delegado federal que a comandou, Protógenes Queiroz, ou da Castelo de Areia (2009), que ruiu feito um castelo de cartas. Um dos pilares que hoje permite à sociedade ver encarcerados aqueles personagens, há pouco inalcançáveis, é a possibilidade de prisão a partir da decisão de 2º grau. Caso que reforça esse entendimento é o do mencionado deputado Paulo Maluf, que praticou crimes de corrupção entre 1993/1996 e sua sentença transitou em julgado apenas em dezembro de 2017, quando o ministro Fachin o mandou para a cadeia. Até então, o deputado frequentava as sessões plenárias normalmente, mas bastou ser preso para que o peso dos seus 86 anos lhe tombasse e emergissem todos os problemas de saúde. Condenado a 7 anos e 9 meses de reclusão, cumpriu apenas 3 meses, beneficiado por decisão que autorizou a prisão domiciliar [52].

Nesse mesmo sentido, não por mera coincidência, o mencionado crime do fazendeiro Omar Coelho Vitor, paciente do HC 84078/MG, que motivou a mudança de entendimento do STF em 05/02/2009, quando passou a considerar inconstitucional a prisão antes do trânsito em julgado da sentença, prescreveu enquanto tramitava no STJ. A vítima do fazendeiro até hoje se encontra com o projétil disparado por Omar instalado em seu corpo, enquanto ele gozou da prescrição conquistada pela sua combativa defesa em diversos recursos no STJ, conforme histórico dedicadamente traçado pelo professor e juiz do TJDFT Fernando Brandini Barbagallo [53].

Outro caso que vale recordar, foi o do ex-jogador de futebol Edmundo, apodado “animal”, que se envolveu num acidente automobilístico no RJ em dezembro de 1995, no qual morreram três pessoas, entre as quais uma jovem de 16 anos, e outras três sofreram lesões corporais. Pelo acidente, Edmundo foi condenado em 1ª instância no dia 5/3/1999, por homicídio culposo e lesões corporais culposas, com pena privativa de liberdade de 4 anos e 6 meses de detenção, a ser cumprida inicialmente no regime semi-aberto. Patrocinado por eficiente banca de advogados, apresentou diversos recursos até que em 17/02/2010, 15 anos depois do crime, ocorreu o trânsito em julgado no STJ. Recorreu ao STF e no dia 9/8/2011 o relator do caso, ministro Joaquim Barbosa, declarou a prescrição da pretensão punitiva, na modalidade intercorrente [54].

Exemplos como esses transbordaram no Judiciário brasileiro entre 2009 e 2016, quando sobreveio o julgamento que alterou a posição, posição essa mantida na decisão que negou o HC preventivo a Lula no dia 04/4/2018. Nessa quadra, concorda-se com a compreensão atual da Corte, também, porque o art. 5º, LXI, da CF/88, ao tratar das hipóteses de prisão, dispõe que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. Como se vê, não há nesse dispositivo nenhum impedimento para a prisão após a condenação de 2º grau, porque ela é emanada por autoridade judiciária competente, conforme requer o comando. Portanto, o princípio da presunção de inocência não veda o início do cumprimento da pena.

Além disso, é forçoso aceitar que a presunção de inocência vai se enfraquecendo com o avanço processual: inicia-se como investigado, na esfera policial, onde avança para indiciado; depois é denunciado, na seara do Ministério Público; em seguida réu, na ação penal, e por fim condenado pelo juízo singular e posteriormente pelo colegiado. Sendo assim, não se pode presumir que todos os julgamentos de 1º e 2º graus estão equivocados, “sob pena de subverter o ordenamento jurídico”, como disse o ministro Alexandre de Moraes no seu mais recente voto sobre o tema, em 04/4/2018. Isso equivaleria a desconsiderar aqueles julgamentos, numa completa desmoralização das duas primeiras instâncias judiciais.

A partir dos argumentos apresentados, é de se concluir que: a) ninguém mata mais que a corrupção no país; b) o Parlamento não se movimentará para dar à sociedade o trato legislativo que ela quer para a questão agitada neste artigo; c) além dos argumentos aqui apresentados, há parcela considerável de respeitáveis juristas e operadores do direito que também consideram que a prisão a partir da decisão de 2ª instância não desborda das balizas constitucionais e legais; d) seria um enorme retrocesso que criminosos perigosos, ou antes inalcançáveis, que hoje estão cumprindo pena, fossem soltos e posteriormente beneficiados pela prescrição. Sendo assim, deve prevalecer o atual entendimento do STF, com possibilidade de prisão a partir da decisão de 2ª grau, para termos um país melhor, pois é penoso aceitar que dispositivos normativos que deveriam prestar-se à proteção da sociedade se convertam em elementos de salvaguarda dos poderosos que comandam e sangram a República.

Autor
Luciano Rosa Vicente

Bacharel em Ciências Contábeis; especialista em Direito Público, Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Disciplinar; graduando de Direito.

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