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Mudança do Coaf para o BC e o combate à lavagem de dinheiro

DIREITO DE DEFESA

Mudança do Coaf para o BC e o combate à lavagem de dinheiro

Por Pierpaolo Cruz Bottini

Em agosto deste ano o governo federal expediu uma medida provisória que muda o nome do Coaf para Unidade de Inteligência Financeira (UIF) e o desloca do Ministério da Fazenda para a estrutura do Banco Central.

Para além da questão estética, a alteração afeta a funcionalidade e a efetividade do gerenciamento de informações para prevenção e combate à lavagem de dinheiro.

  1. A Unidade de Inteligência Financeira – os diversos modelos internacionais
    A melhor forma de combater organizações criminosas é identificar e bloquear seus bens. Para além da prisão de membros, a supressão de recursos é fundamental para esvaziar sua estrutura e capacidade de atuação.

Os produtos dos crimes praticados por essas organizações são em geral escondidos e reinseridos na economia formal através de diversas modalidades de lavagem de dinheiro. Para isso, são utilizadas operações simuladas e fraudes para conferir aos recursos de origem criminosa uma aparência de licitude.

Como o Estado não tem capacidade de fiscalizar todos os atos financeiros e comerciais usados para mascarar bens, diversos países — entre eles o Brasil — criaram um sistema de colaboração compulsória.  Pelo qual profissionais e entidades que trabalham em setores mais usados por criminosos para ocultação de recursos devem notificar autoridades públicas sempre que tomarem conhecimento de operações suspeitas, como transações com altos valores em espécie ou depósitos fracionados. Assim, bancos, cartórios, seguradoras, joalheiros, leiloeiros de arte, dentre outros, tem obrigação de colaborar com o Poder Público e comunicar atos de possível ocultação de bens ilícitos.

Tais comunicações são feitas às Unidades de Inteligência Financeira (UIFs), órgãos públicos com atribuição de recolher dados, organizá-los e repassá-los às autoridades competentes para investigar a lavagem de dinheiro, como o Ministério Público.

Diversas recomendações de entes internacionais de combate à lavagem de dinheiro recomendam a instituição de UIFs para sistematizar informações sobre movimentações atípicas de capital, aprimorar o combate à reciclagem de capitais, e facilitar o intercâmbio de experiências em âmbito internacional.

Nessa linha, o GAFI (Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo) recomendou que os países criassem Unidades de Informação Financeira (UIF) que servissem como centro para receber, analisar e transmitir declarações de operações suspeitas (Recomendação 29). No mesmo sentido, a Diretriz 2018/843 do Conselho Europeu destaca a importância das UIFs no combate ao terrorismo e à lavagem de dinheiro e indica como “essencial reforçar a eficácia e a eficiência das UIFs”[1]

Diante disso, diversos países criaram UIFs, com diferentes estruturas, a depender de sua vocação institucional e tradição jurídica. Existem basicamente existem três espécies de Unidades de Inteligência Financeira: (i) judiciais (ii) coercitivas, (iii) administrativas – sem considerar as hibridas que mesclam elementos de cada uma delas.

As unidades judiciais são previstas, em geral, naqueles países nos quais o Ministério Público é parte integrante do Judiciário. Neles, as Unidades tem natureza persecutória penal porque o próprio órgão responsável pela acusação possui os instrumentos de acompanhamento ou recebimento de informações sobre operações suspeitas.

As unidades coercitivas tem natureza administrativa, mas podem determinar medidas cautelares como suspensão de transações, congelamento e sequestro de bens.

Por fim, as administrativas têm atribuição exclusiva de sistematização de informações e produção de análises sobre possíveis operações ilegais ou atípicas. Não tem poder de determinar medidas de coerção ou de iniciar processos judiciais. Apenas colhem a informação e comunicam, provocam ou instruem os demais órgãos competentes para a persecução penal ou investigação, como o Ministério Público e a Polícia, nos termos e limites da lei.

Dado o papel central das UIFs no combate à lavagem de dinheiro, a comunidade internacional recomenda que os países se esforcem para garantir sua autonomia institucional, livrando-as de ingerências políticas e de manipulações que dificultem o exercício de suas funções. Em regra, tais entidades são ligadas diretamente a Ministérios da Fazenda ou da Justiça, com quadro próprio de servidores e estrutura orçamentária adequada.

  1. A Unidade de Inteligência Financeira no Brasil
    A unidade de inteligência brasileira é a UIF — antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) — e tem natureza administrativa. Até o advento da Medida Provisória 893, de agosto deste ano, seu conselho era composto por servidores públicos integrantes do quadro efetivo do Banco Central, da Comissão de Valores Mobiliários, da Susep, da Receita Federal e de outros órgãos[2].

A natureza administrativa da UIF impede que o órgão promova medidas cautelares, quebras de sigilo, ou mesmo requeira a instauração de processo penal. Cabe à instituição receber, armazenar e sistematizar informações, elaborar Relatórios de Inteligência Financeira, e contribuir para o combate à lavagem de dinheiro através do planejamento estratégico, de ações de inteligência e de gestão de dados. Além disso, a UIF detém atribuições de supervisão administrativa de setores sensíveis e de formulação de políticas para o setor.

No setor de inteligência, a UIF recebe dados, organiza-os, e elabora relatórios para subsidiar autoridades competentes para investigar ou dar início à persecução pelo crime de lavagem de dinheiro e outros, sempre dentro dos limites autorizados e regulados pela lei.

No campo regulatório, cabe à UIF elaborar regras voltadas a alguns setores sensíveis à lavagem de dinheiro sobre a forma e método de registro de informações de clientes e sobre os atos suspeitos de lavagem que devem ser comunicados. Por fim, a atividade repressiva decorre da competência da UIF para instaurar processo administrativo e aplicar sanções às entidades e pessoas que descumprirem as regras legais sobre prevenção à lavagem de dinheiro.

As atribuições do UIF de regulamentação e repressão são válidas apenas para setores sem órgão regulatório próprio, como empresas de factoring, de comércio de joias, metais preciosos, pedras, objetos de arte e antiguidades. Aquelas que contam com órgão de controle específico, como bancos  regulados pelo Banco Central — ou agentes de custódia, emissão, distribuição, liquidação de títulos ou valores mobiliários  regulados pela CVM — empresas de seguro, capitalização ou previdência privada  regulados pela Susep, e outros, devem observar as regras estabelecidas pelo órgão regulatório correspondente, e perante este serão processados administrativamente.

No entanto, todas as entidades que operam em setores sensíveis  tenham ou não órgão regulador próprio — devem atender às requisições de informações formuladas pela UIF na periodicidade, forma e condições por ela estabelecidas, cabendo-lhe preservar, nos termos da lei, o sigilo das informações prestadas.

Justamente por ter atribuições de regular diversos setores e de receber informações de pessoas físicas e jurídicas de todas as áreas obrigadas, a UIF deveria ser um órgão eclético, composta por representantes de diversos órgãos públicos. E assim era sua composição, até o advento da Medida Provisória 893/19

  1. A MP 893/19
    O governo federal expediu em agosto a Medida Provisória 893, que submete a UIF nacional — antigo Coaf — ao Banco Central e afasta a necessidade de que seus membros sejam funcionários públicos.

Se o órgão antes tinha certa autonomia ao estar atrelado diretamente ao Ministério da Fazenda, e independência por ser constituído exclusivamente por servidores públicos, agora é subordinado a uma autarquia e pode ter em seu conselho membros do setor privado.

A medida é disfuncional e arriscada.

O GAFI recomenda que “A UIF deverá ser operacionalmente independente e autônoma, o que significa que a UIF deverá ter autoridade e capacidade de desenvolver suas funções livremente, inclusive tomar por conta própria a decisão de analisar, solicitar e/ou disseminar informações específicas.”[3]. A Diretiva EU 2015/849 – documento de referência de combate a lavagem de dinheiro mesmo para países externos à União Européia, dispõe em seu item 37 que:

“37 Todos os Estados-Membros criaram, ou deverão criar, UIF operacionalmente independentes e autônomas para recolher e analisar a informação que recebem com o objetivo de estabelecer ligações entre as operações suspeitas e as atividades criminosas a elas subjacentes, a fim de prevenir e combater o branqueamento de capitais e o financiamento do terrorismo. Deverá entender-se por UIF operacionalmente independente e autônoma a UIF com os poderes e os meios para desempenhar livremente as suas funções, nomeadamente a possibilidade de decidir autonomamente quanto à análise, ao pedido e à disseminação de informações específicas.

Em 2006, o Congresso Nacional aprovou o relatório final da CPI dos Correios que recomendava transformar a UIF brasileira em uma Agência Nacional de Inteligência Financeira, com autonomia, estrutura permanente de servidores técnicos e administrativos qualificados que, independentemente da mudança dos componentes da direção, teriam condições de manter o funcionamento adequado e ininterrupto de suas atividades, bem como a memória de sua atuação e processos de trabalho.

A MP em análise vai de encontro a essas diretrizes internacionais e à proposta do Congresso Nacional para o fortalecimento da UIF. Ao subordina-la a uma autarquia, não fixar mandatos para conselheiros e permitir membros externos ao serviço público, a norma fragiliza a instituição, cria um regime instável para seus integrantes e dificulta o acúmulo de experiências, essencial para um órgão de estratégia de informação.

As funções do Banco Central não se confundem com as da UIF. O primeiro regulamenta e fiscaliza o sistema financeiro e as instituições financeiras. A segunda tem um âmbito mais abrangente, pois recebe e sistematiza e informações de inúmeros setores para além de bancos e similares, a maior parte deles sem qualquer relação com as atividades do Banco Central.

Em 2018 a UIF brasileira recebeu mais de 100 mil comunicados de comerciantes de bens de luxo, transportadoras de valores, imobiliárias e outros entes, desvinculados e não regulados pelo Banco Central. Ao ser subordinada a este, a UIF terá dificuldades para regular atos, firmar parcerias, convênios, pedir ou receber informações dessas entidades estranhas ao sistema financeiro. O fluxo de informações, que hoje funciona bem, pode ficar comprometido com a nova posição da UIF.

Mesmo a atividade regulatória será afetada. Hoje o processo administrativo para apuração do descumprimento de normas de combate à lavagem de dinheiro por entidades sensíveis é regulado com precisão por um Decreto Presidencial (9.663/19). A MP em discussão remete à Diretoria do Banco Central as atribuições para regular os procedimentos. ritos, prazos e critérios de fixação de penas administrativa.

Não se discute a competência ou isenção dos diretores do Banco Central, mas não parece adequado que eles regulem processos sancionatórios destinados a setores distintos da área financeira, estranhos às suas atribuições, competência e experiência.

No que se refere à estrutura, a comunidade internacional recomenda que as UIFs tenham assegurados recursos suficientes para o cumprimento de suas funções.

Nesse sentido, o GAFI recomenta que:

  1. A UIF deverá receber recursos financeiros, humanos e técnicos adequados, de forma a assegurar sua autonomia e independência e permitir que a UIF possa cumprir de forma eficaz suas responsabilidades. Os países deveriam possuir processos para garantir que os funcionários da UIF tenham altos padrões profissionais, inclusive padrões de confidencialidade, além de serem idôneos e aptos.[4]

Alguns países, como Portugal, preveem garantias de estrutura mínima às UIFs na própria lei:

1 – A Unidade de Informação Financeira tem independência e autonomia operacionais, devendo estar dotada dos recursos financeiros, humanos e técnicos suficientes para o desempenho cabal e independente das suas funções.

2 – A Unidade de Informação Financeira exerce as suas funções de modo livre e com salvaguarda de qualquer influência ou ingerência política, administrativa ou do setor privado, suscetível de comprometer a sua independência e autonomia operacionais.[5]

A MP, embora preveja autonomia técnica e operacional, não prevê autonomia orçamentária à UIF. O órgão passará a depender do Banco Central para garantir estrutura mínima ao exercício de suas atividades. Ocorre que a autarquia tem outras prioridades, outras atribuições, e talvez não dê à UIF a devida atenção institucional, comprometendo sua estrutura.

Para além disso, como já exposto, a Medida permite que agentes do setor privado componham o Conselho da UIF. Sem questionar a competência de profissionais desta área, a falta de experiência no setor público e eventuais conflitos de interesse podem afetar sua atividade, sem contar o risco de compartilhar informações sensíveis com pessoas não submetidas ao rigor disciplinar imposto aos servidores públicos em relação à gestão do sigilo.

Vale destacar que o GAFI sugere que “a UIF deverá ser capaz de obter e empregar os recursos necessários para desenvolver suas funções, de forma individual ou rotineira, livre de qualquer influência ou interferência política, governamental ou industrial indevida, que possa comprometer sua independência operacional.”.[6] A presença de representantes do setor privado no Conselho — sem a existência de quarentenas ou restrições — pode comprometer tal independência.

Por fim, a MP não prevê mandato para os membros da UIF, comprometendo sua independência ao subordiná-los a atos de vontade de dirigentes do Banco Central, nem sempre atrelados às finalidades institucionais da agência de inteligência.

  1. Conclusão
    A existência de uma UIF forte e independente é a chave para prevenir e combater a lavagem de dinheiro. Ao rebaixar seu status institucional e submetê-la a autarquia com atribuições distintas, o governo federal coloca em risco um mecanismo importante para o combate ao crime organizado, seguindo na contramão do mundo e de sua própria diretriz de reforçar a segurança pública.

[1] Considerando 16 da DIRETIVA (UE) 2018/843 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 30 de maio de 2018  que altera a Diretiva (UE) 2015/849 relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais ou de financiamento do terrorismo e que altera as Diretivas 2009/138/CE e 2013/36/UE

[2] Lei 9.613/98. art. 16 e Decreto 9663/19, art. 3º

[3] GAFI – Nota interpretativa 8 da Recomendação 29 (UIFs)

[4] GAFI – Nota interpretativa da Recomendação 29 (UIFs)

[5] Lei 83/2017, art. 83

[6] GAFI – Nota interpretativa da Recomendação 29 (UIFs)

 

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.

Revista Consultor Jurídico, 29 de outubro de 2019

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